"Todo dom excelente e toda a dádiva perfeita vem do alto, desce do Pai das luzes" (Tg. 1, 17). Mais ainda, a Luz procede do Pai, difunde-se copiosamente sobre nós e com o seu poder unificante nos atrai e nos conduz ao alto. Faz-nos retornar à unidade e à deificante simplicidade do Pai, congregados nEle. "Porque dEle e para Ele são todas as coisas", como diz a Escritura.
Invoquemos, pois, a Jesus, a Luz do Pai, "a luz verdadeira que vindo a este mundo, ilumina a todo homem" (Jo. 1, 9), "por quem obtivemos acesso" (Rom. 5, 2; Ef. 2, 18; 3, 12) ao Pai, à luz que é fonte de toda a luz. Fixemos o olhar o melhor que pudermos nas luzes que os Padres nos transmitem pelas Sagradas Escrituras. Tanto quanto nos seja possível, estudemos as hierarquias dos espíritos celestes conforme a Sagrada Escritura nos revelou de modo simbólico e anagógico. Fixemos atentamente o olhar imaterial do entendimento na luz transbordante mais que fundamental, que se origina do Pai, fonte da Divindade. Por meio de figuras simbólicas, ilustra-nos sobre as bem-aventuradas hierarquias dos anjos. Elevemo-nos, porém, sobre esta profusão luminosa, até o puro Raio de Luz em si mesmo.
De fato, este Raio de Luz não perde nada de sua própria natureza, nem de sua íntima unidade. Ainda quando atua e se multiplica exteriormente, como é próprio de sua bondade, para enobrecer e unificar os seres que estão sob a sua providência, permanece, no entanto, interiormente estável em si mesmo, absolutamente firme, em imóvel identidade. Dá a todos, na medida de suas forças, poder para elevar-se e unir-se a Ele segundo sua própria simplicidade.
Porém este Raio divino não poderá iluminar-nos se não estiver espiritualmente velado na variedade das sagradas figuras, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, segundo a paternal providência de Deus.
Pelo que nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por disposição divina imitando as hierarquias celestes que não são deste mundo. Mas as hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme a nossa maneira de ser, nos elevemos analogicamente a partir destes sinais sagrados até a compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, os homens, não poderíamos de nenhum modo elevar-nos por via puramente espiritual a imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiem conforme requer nossa natureza.
Qualquer pessoa, ao refletir, dá-se conta de que a beleza aparente é sinal de mistérios sublimes. O bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual. As luzes materiais são imagens da copiosa efusão da luz imaterial. As diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa da mente. As ordens e os graus daqui debaixo simbolizam as harmoniosas relações do Reino de Deus. A recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em Jesus, e o mesmo sucede com os seres no Céu que de modo transcendente recebem os dons que nos são dados simbolicamente.
A fonte da perfeição espiritual nos forneceu imagens sensíveis que correspondem às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituíu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste, tanto quanto era possível, em seu divino sacerdócio. Revelou-nos tudo isto por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos espiritualmente desde o sensível e conceitual, através dos símbolos sagrados, até o cume simplíssimo daquelas hierarquias celestes.
Antes de tudo, creio dever expor qual é o principal objeto de toda a hierarquia, e em que sentido é proveitosa aos seus membros. Em seguida, exporei as hierarquias celestes, segundo o que nos revelou a Sagrada Escritura. Por último, descreveremos sob que formas sagradas a Escritura representa as ordens celestes, pois através destas figuras devemos elevar-nos a uma perfeita simplicidade.
Não podemos imaginar, como faz o vulgo, aquelas inteligências celestes com muitos pés e rostos, de forma parecida a bois ou como leões selvagens. Não possuem bicos curvos de águias, nem asas ou penas de pássaros. Não as imaginemos como rodas de fogo pelo céu, tronos materiais nos quais senta-se a Divindade (Dn. 7, 9; Ap. 4, 2), cavalos de várias cores (Zac. 1, 8; 6, 2; Apoc. 6, 1-9), capitães brandindo espadas (Jos. 5, 13) ou qualquer outra forma em que as Santas Escrituras no-las tenham representado em variedade de símbolos. A teologia utiliza-se de imagens poéticas ao estudar estas inteligências, que carecem de figuras. Porém, como fica dito, o faz em atenção à nossa própria maneira de entender; serve-se de passagens bíblicas colocadas ao nosso alcance, em forma anagógica, para elevar-nos mais facilmente ao espiritual.
Estas figuras se referem a seres tão espirituais que não podemos conhecê-los nem contemplá-los. Figuras e nomes de que se valem as Escrituras são inadequados para representar tão santas inteligências. De fato, poderia objetar-se que se os teólogos tivessem querido dar forma corporal ao que é absolutamente incorpóreo, deveriam ter começado com os seres tidos como os mais nobres, imateriais e transcendentes, em vez de se utilizarem de múltiplas formas terrenas, ínfimas, para aplicá-las a realidades divinas, que são totalmente simples e celestes. Quem sabe o façam com intenção de elevar-nos e não de rebaixar o celeste com imagens inadequadas. Na realidade, é uma ofensa indigna aos poderes divinos e induz nossa inteligência ao êrro, confundindo-a com estas composições profanas. Alguém poderia facilmente imaginar que acima dos céus haveria uma multidão de leões e de cavalos, que os louvores seriam mugidos, que ali voariam bandos de pássaros, ou que os céus estariam cheios de outros gêneros de animais, matérias vis e semelhantes desatinos que descrevem, até o absurdo, a corrupção e as paixões.
Porém se alguém investigar a verdade, colocará em evidência a sabedoria das Escrituras. Nelas há um providencial cuidado em não ofender os poderes divinos quando representam com figuras as inteligências celestes. Com a mesma solicitude evitam que nos afeiçoemos desordenadamente aos símbolos que contenham algo de baixeza e vulgaridade. Quanto ao mais, há duas razões para que se represente com imagens o que não tem figura e para dar corpo ao incorpóreo. Primeiramente, porque somos incapazes de elevar-nos diretamente à contemplação mental. Necessitamos de algo que nos seja conatural, metáforas sugestivas das maravilhas que escapam ao nosso conhecimento. Em segundo lugar, é muito conveniente que para o vulgo permaneçam veladas, com enigmas sagrados, as verdades que contém sobre as inteligências celestes. Nem todos são santos e a Sagrada Escritura adverte que não convém a todos conhecer estas coisas (I Cor. 8, 7; Mt. 13, 11; Lc. 8, 10).
Em relação à inconveniência das imagens bíblicas, ou ao uso de comparações tão baixas para significar hierarquias tão dignas e santas, esta objeção pode ser respondida dizendo que a revelação divina apresenta-se de duas maneiras.
Uma procede naturalmente por meio de imagens semelhantes ao que significam. A outra emprega figuras dessemelhantes até a total desigualdade e ao absurdo. Ocorre algumas vezes que as Escrituras, em seus misteriosos ensinamentos, representam a adorável santidade de Deus "Verbo" (Jo. 1, 1), "Inteligência" (Is. 40, 13) e "Essência" (Ex. 3, 14). Fazem ver que a racionalidade e a sabedoria são atributos convenientes a Deus, a quem devemos c onsiderar real subsistência e causa verdadeira da subsistência de todos os seres. Mais ainda, representam-no como Luz (I Jo. 1, 15) e chamam-no Vida (Jo. 11, 25).
Estas formas sagradas certamente mostram mais reverência e parecem superiores às representações materiais. Não são, entretanto, menos deficientes que as outras em relação à Deidade, que está mais além de qualquer manifestação do ser e da vida. Nenhuma luz pode expressá-la e toda razão ou inteligência não chega nem a assemelhar-se-lhe.
Ocorre por isto que as mesmas Escrituras enaltecem a Deidade com expressões totalmente dessemelhantes. Chamam-na de invisível, infinita, incompreensível e de outras coisas que dão a entender não o que é, mas o que não é. Esta segunda maneira, segundo o meu entender, é muito mais própria ao falar de Deus pois, como a secreta e sagrada tradição nos ensina, nada do que existiu se parece com Deus e desconhecemos sua supraessência invisível, inefável, incompreensível (Col. 1, 15; I Tim. 1, 17; Heb. 11, 27).
Posto que a negação parece ser mais apropriada para falar de Deus, e a afirmação positiva é sempre inadequada para o mistério inexpressável, convém melhor referir-se ao invisível por meio de figuras dessemelhantes. Pelo qual, as Sagradas Escrituras, longe de desprezar as hierarquias celestes, enaltecem-nas com figuras totalmente dessemelhantes. Deste modo, realmente damos-nos conta de que aquelas hierarquias, tão distantes de nós, transcendem toda materialidade.
Quanto ao mais, não creio que nenhuma pessoa sensata deixe de reconhecer que as dessemelhanças servem melhor que as semelhanças para elevar nossa mente ao reino do espírito. Figuras muito nobres poderiam induzir alguns ao êrro de pensar que os seres celestes são homens de ouro, luminosos, radiantes de beleza, suntuosamente vestidos, inofensivamente chamejantes, ou sob outras formas como estas com que a teologia tem representado as inteligências celestes (Dan. 10, 5; Mt. 28, 3).
Para evitar estes mal entendidos entre pessoas incapazes de elevar-se acima da beleza que os sentidos percebem, piedosos teólogos, sabia e espiritualmente, condescenderam com o uso de símbolos dessemelhantes. Agindo assim eles frearam nossa tendência natural ao material e o desejo de satisfazer-nos preguiçosamente com imagens de baixa qualidade. Com isto favoreceram a elevação da parte superior da alma, que sempre anela as coisas do alto. De fato, a tosquidade destes símbolos serve de estímulo para que até os afeiçoados às coisas terrenas não possam julgar verossímil nem possível a semelhança destas coisas triviais com as celestes. Por outro lado, em todas as coisas há algo de beleza, como diz corretamente a Escritura: "Tudo é muito bom" (Gen. 1, 31).
Todas as coisas podem favorecer a contemplação. Conforme dizia antes, as dessemelhanças com o mundo podem aplicar-se a estes seres que são simultaneamente inteligíveis e inteligentes. Tenha-se, porém, sempre em conta a diferença que há entre o que cai sob o domínio dos sentidos e do próprio entendimento. Assim, nas criaturas irracionais a cólera nasce de um impulso apaixonado de movimento irascível, mas deve-se entendê-lo de modo diverso quando se trata de quem desfruta da razão. Neste caso a cólera é, creio eu, a firme atuação da razão e a capacidade de perseverar com tenacidade em princípios santos e imutáveis.
De modo semelhante a concupiscência. Nos irracionais é uma busca ilimitada de bens materiais sob o impulso do instinto ou do costume de afeiçoar-se ao passageiro, apetite irracional dominador que induz os viventes a possuir qualquer coisa prazerosa aos sentidos. Porém quando o aplicamos ao ser inteligente, devemo-lo entender de outro modo. Dizemos que sentem desejos, mas isto significa o anelo divino da Realidade imaterial, que está além de toda razão e de toda a inteligência. É o firme e constante desejo de contemplar pura e impassivelmente a Supraessência. Fome espiritual insaciável e verdadeira comunhão com a luz imaculada e sublime, de esplêndida e inefável beleza. Intemperança que será o ardor perfeito, inquebrantável, manifesto no anelo constante da beleza divina, a total entrega ao verdadeiro objeto de todo desejo.
Dizemos que são irracionais os animais e os objetos, porque falta-lhes a razão; aos objetos, falta-lhes também a sensação. Porém quando o dizemos dos seres imateriais, intelectuais, entende-se sob o aspecto da santidade. São criaturas que transcendem em muito a nossa razão corporal discursiva, como a inteligência ultrapassa as sensações materiais. Portanto, podemos servir-nos retamente de figuras, tomadas inclusive da matéria vil, em relação aos seres celestes. Finalmente, as coisas terrenas subsistem graças à Beleza absoluta que contém dentro de sua condição material. Pela matéria podemos elevar-nos até os arquétipos imateriais. Porém deve-se ter cuidado especial para usar devidamente as semelhanças e dessemelhanças. Não se pode estabelecer uma relação de identidade mas, considerando a distância entre os sentidos e o entendimento, acomodar-se-ão segundo corresponda a cada qual.
Veremos que os teólogos místicos servem-se disto para falar das hierarquias celestes e também para explicar os mistérios da Deidade. Às vezes celebram-na com imagens muito eloqüentes; por exemplo, quando dizem Sol de Justiça (Mal. 4, 2; Sab. 5, 6), Estrela Matutina que se levanta até a Inteligência (II Pe. 1, 19; Apoc. 22, 16), Luz de fulgor intelectual (I Jo. 1, 5; Mt. 5, 14). Em outros casos utilizam-se de expressões mais terrenas. Comparam Deus com o fogo que arde sem queimar (Ex. 3, 2; Sab. 18, 3; Ex. 13, 21), com a água que comunica plenitude de vida, que metaforicamente chega às entranhas e forma rios inesgotáveis (Jo. 4, 14; Jo. 7, 38; Prov. 18, 4). Utilizam também semelhanças de coisas ordinárias, como ungüento suave (Cant. 1, 3; Is. 61, 1; Jer. 1, 5; Atos 10, 36), pedra angular (Is. 28, 16; Ef. 2, 20). Chegam até a comparações de animais. Atribuem a Deus propriedades do leão, da pantera, do leopardo, e do urso devorador (Is. 31, 4; Os. 5, 14; 13, 7). Acrescente-se o que parece mais abjeto e impróprio de tudo, a forma de verme (Sl. 22, 6), com a qual representaram a Deus admiráveis intérpretes dos mistérios divinos.
Deste modo os que conhecem sobre Deus, intérpretes sob misteriosa inspiração, não misturam o Santo dos santos com coisas perfeitas e profanas. Utilizam uma figura dessemelhante para que as realidades divinas não se confundam com as imundas nem os fervorosos admiradores dos símbolos divinos se apeguem a tais figuras como se tivessem uma existência real. Assim, com verdadeiras negações e com dessemelhanças, últimos reflexos divinos, honram a Deus como é devido.
Nada, portanto, há de indigno em representar os seres celestes, como ficou dito, por meio de semelhanças ou dessemelhanças inadequadas ao objeto.
Em minha investigação ordinária esta dificuldade não me teria estimulado a chegar a uma explicação exata das virtudes sagradas se não tivesse tido problemas com as imagens da Escritura, disformes em relação aos anjos. Minha mente não podia satisfazer-se com este inadequado imaginário. Esta inquietação me conduziu a ir mais além da representação material, passando santamente pelas aparências e através delas elevando-me a realidades que não são deste mundo.
Porém seja suficiente o que já foi dito sobre as imagens materiais e impróprias com que as Escrituras Sagradas se referem aos anjos. Devo explicar agora o que entendo por hierarquia e que vantagens oferece aos que dela participam. Que nesta exposição o meu guia seja Cristo, meu Cristo, se é lícito assim falar, o inspirador de tudo o que podemos conhecer sobre a hierarquia, e tu, meu filho, deves seguir as recomendações de nossa tradição hierárquica. Escuta devotamente estas sagradas e inspiradas considerações e esta doutrina te servirá de iluminação. Guarda as santas verdades no recôndito de tua alma. Preserva sua unidade diante da multiplicidade do profano (I Tim. 6, 20) pois, como diz a Escritura, não é lícito atirar aos porcos a pura, brilhante e esplêndida harmonia das pérolas espirituais (Mt. 7, 6).