Cultura I: A catolicidade é também uma cultura
"Esquivou-se de todas as atividades do mundo e viveu com pureza e santidade; foi amigo dos pobres, convicto de que sua alma haveria de pertencer ao céu. Manteve o corpo continuamente ocupado no exercício da pintura e nunca quis executar obras que não representassem santos", escreve Giorgio Vasari, biógrafo de Fra Angelico. Essa dedicação exemplifica como a cultura católica pode se manifestar através da arte. Também sinaliza a sua importância no processo educativo católico.
Por estarmos tão imbuídos por outras preocupações e por acharmos que a arte é um território muito distante, é comum encontrarmos alunos que não se interessam por arte porque não têm acesso a ela. O resultado é que, mesmo produzindo materiais de arte acessível, o tema ainda parece "não pertencer". Existe um grande muro de "não pertencimento" que distancia as pessoas da arte, assim como existe um grande muro que distancia o católico da cultura católica. Tanto em sua arte quanto em sua língua, o latim, muitos católicos sentem que "aquilo não é para eles". Uma marginalização silenciosa tomou conta do mundo católico, incentivada por discursos que distanciam ainda mais as pessoas de sua herança. Dessa forma, a arte católica, a música sacra e a língua só podem ser acessadas mediante pagamento, em locais fora da igreja. Nessa negligência está boa parte dos nossos problemas.
Cultura é um conceito que abrange os modos de vida, costumes, crenças, valores, normas, tradições, conhecimentos e manifestações artísticas de um grupo de pessoas. Ela é transmitida de geração em geração e evolui ao longo do tempo, influenciando e sendo influenciada pelo contexto histórico, social, econômico e geográfico. Os valores e crenças incluem ideias sobre o que é certo ou errado, importante ou insignificante, desejável ou indesejável. As normas e regras são diretrizes e expectativas sobre como as pessoas devem se comportar em diferentes situações, podendo ser formais, como leis, ou informais, como costumes e etiqueta social. A língua falada e escrita é um elemento-chave da cultura, permitindo a comunicação e a transmissão de conhecimentos e tradições. Tradições e rituais, como celebrações, festividades e cerimônias, compõem a linguagem simbólica da comunidade. A arte e a literatura refletem a criatividade, talentos e a identidade cultural de um grupo por meio de música, dança, pintura, escultura, teatro e literatura. Conhecimentos e tecnologia envolvem o acúmulo de saberes e técnicas desenvolvidas pela sociedade, sejam científicos, técnicos ou empíricos. Costumes e hábitos são os modos de vida e práticas cotidianas que distinguem um grupo de outro, como vestimentas, culinária e formas de socialização. As instituições sociais, como a família, a escola, a igreja e o governo, desempenham funções importantes na sociedade.
Nós temos uma forma de arte própria, temos uma língua (o latim), temos uma literatura, temos leis, instituições oficiais, costumes, festas, ritos, um calendário. Ou seja, nós temos as mesmas características do povo hebreu que, sem uma terra determinada, mantém sua tradição em outras terras. Ser católico é, também, mas não só, conhecer e viver essa cultura. A cultura católica, com toda essa estrutura física e espiritual, nos fornece a capacidade de viver no mundo sem ser do mundo. Nós fomos instruídos a acreditar que isso é um empecilho, mas isso é uma bênção. O Senhor nos deu no catolicismo uma grande pré-figuração do reinado do Senhor e da cultura do Reino.
Giorgio Vasari aponta que "Fra Angelico era humaníssimo e sóbrio e, vivendo castamente, desvencilhou-se dos laços do mundo; costumava dizer com frequência que quem pratica essa arte precisa viver em sossego e despreocupação, dedicado à alma, pois quem faz coisas de Cristo com Cristo deve estar sempre". Esse pensamento reflete a interconexão entre a vida católica fértil e a produção artística na cultura católica. O transcendente é o que movimenta o processo criativo do artista. Esse traço se perdeu quando não mais vislumbramos o transcendente, mas somente a imanência. A arte religiosa passou a expor somente o terreno, mas o terreno sem a luz do alto gera o vislumbre da solidão, da tristeza, de certa falta de ânimo e destino. Não são os sinais dessa anemia eclesial que vivemos?
A Igreja Católica desempenhou um papel vital na formação da arte, música, literatura e arquitetura. Grandes obras de arte foram encomendadas pela Igreja, resultando em um legado imenso que inclui as pinturas de Michelangelo na Capela Sistina, a arquitetura da Basílica de São Pedro e a música sacra de compositores como Palestrina, Bach, Mozart e José Maurício Nunes Garcia. Essa influência não se limitava apenas às encomendas, mas também à forma como a arte era concebida e utilizada para edificar:
"Dizem alguns que Frei Giovanni nunca pegava os pincéis sem antes orar. Nunca fez crucifixo sem que suas faces se banhassem de lágrimas. E isso se vê claramente nas atitudes de suas figuras, na bondade de sua grande disposição para a religião cristã", relata Vasari. Essa prática de Frei Giovanni mostra como a devoção pessoal permeava e enriquecia a produção artística, criando obras carregadas de significado espiritual.
Giulio Carlo Argan relata que "o frade remonta às grandes premissas ontológicas: no desenvolvimento histórico de sua pintura é possível enxergar um aprofundamento progressivo de sua doutrina. E, todavia, não é um doutrinário puro, um teólogo: da mesma maneira com que participa da discussão sobre a arte, também toma posição, quer demonstrar que uma pintura moderna não é necessariamente leiga e que uma pintura não é religiosa apenas porque ilustra piamente temas extraídos da vida de Cristo e dos santos. Sua pesquisa é dirigida, em suma, a conferir à pintura religiosa um valor intelectual, um fundamento teórico". Essa perspectiva clareia o assunto sobre o gosto artístico e a grande diferença que a disposição e adesão católica do artista faz na classificação de uma obra como católica. Fra Angelico, em si mesmo, pode nos fornecer uma grande amostra da conduta católica no meio das artes, produções culturais e processos criativos diversos. Em suma: a obra sempre leva em si partes do autor. Como também mostra a obra "O Retrato de Dorian Gray". A certa adoração do pintor ficou impregnada no retrato do rapaz, isso, somado ao desespero do rapaz diante de si mesmo congelado no tempo, perfeito e belo, gerou uma ação mágica e macabra na história. Mas passemos a reflexões mais felizes.
As celebrações e festividades católicas, como o Natal, a Páscoa e o Corpus Christi, são eventos que não apenas reforçam a fé, mas também promovem um senso de pertencimento e continuidade histórica. Reforçam laços familiares e sociais espirituais. Celebrar é descansar. O descrendenciamento da arte, tanto em qualidade quanto em valor reconhecido pelo povo, restringe uma das portas da contemplação e interfere na vivência da celebração, na fruição, que passa a ser uma busca incessante por uma sensação de arrebatamento que, sem arte e verdadeira e pacífica alegria, nunca virá.
Para aprofundamento: Revista Digital Salutaris: Educação Estética, Arte & Patrimônio
Para aprofundamento: Educa-te: Paideia Cristã
Ana Paula Barros
Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação pela Pontifícia Universidade Católica. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural pela Academia de Belas Artes de São Paulo. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e autora dos livros: Modéstia, Graça & Beleza.
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