Papa Emérito Bento XVI fala sobre aspectos e cuidados na Meditação Cristã
Primeira publicação 05 setembro de 2016
Revisão 17 de março de 2021
Abaixo segue fragmentos da carta do Cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Emérito, sobre a prática da meditação. Os grifos e links são acréscimos que fiz para enriquecer o conteúdo.
Como sempre de forma clara e cuidadosa ele aborda a posição da Igreja mediante a meditação e esclarece algumas questões. Posição esta que é sempre a base da ação do Salus in Caritate.
“Para progredir na vida cristã, faça sempre exercícios espirituais.
Pois os exercícios físicos têm alguma utilidade, mas o exercício espiritual tem valor para tudo porque o seu resultado é a vida, tanto agora como no futuro.”
(1 Timóteo 4:7b,8)
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
CARTA AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
ACERCA DE ALGUNS ASPECTOS DA MEDITAÇÃO CRISTÃ
(15 de Outubro de 1989)
(Carta Completa no site oficial do Vaticano, aqui)
[Excertos]
… É à Igreja que a oração de Jesus é entregue («assim vós deveis rezar», Mt. 6, 9), e por isso a oração cristã, mesmo quando se realiza em solidão, possui na realidade o seu ser no interior daquela «comunhão dos santos», na qual e com a qual se reza, tanto em forma pública e litúrgica como em forma privada.
… Contra o extravio da pseudo-gnose, os Padres afirmam que a matéria foi criada por Deus e por isso não é má. Além disso, asseveram que a graça, cujo manancial é sempre o Espírito Santo, não é um bem próprio da alma, mas deve ser obtida de Deus como dom. Por isso, a iluminação ou conhecimento superior do Espírito («gnose») não torna supérflua a fé cristã. Por último, para os Santos Padres, o sinal autêntico dum conhecimento superior, fruto da oração, é sempre a caridade cristã.
… Com a atual difusão dos métodos orientais de oração no mundo cristão e nas comunidades eclesiais, encontramo-nos de frente a um acentuado renovar-se da tentativa, não isenta de riscos e erros, de fundir a meditação cristã com a não cristã. As propostas nesta direção são numerosas e mais ou menos radicais: algumas utilizam os métodos orientais somente com a finalidade duma preparação psicofísica em vista duma contemplação realmente cristã; outras vão mais além e procuram produzir, com técnicas diversas, experiências espirituais análogas àquelas de que se fala nos escritos de certos místicos católicos; outras ainda não receiam colocar o absoluto sem imagens e conceitos, próprio da teoria budista, no mesmo plano da majestade de Deus revelada em Cristo, a qual transcende toda a realidade finita (mais sobre aqui). Nesse sentido, servem-se duma espécie de «teologia negativa» que supera qualquer afirmação dotada de conteúdo a propósito de Deus, negando que as coisas do mundo possam ser vistas como um vestígio que reenvia para a sua Infinidade. Por esta razão, propõem que se abandone não somente a meditação das obras salvadoras realizadas na história pelo Deus da Antiga e da Nova Aliança, mas também a ideia mesma de Deus Uno e Trino, que é amor, em favor duma imersão «no abismo indeterminado da divindade».
… Para encontrar a reta «via» da oração, o cristão deverá ter presente o que se disse precedentemente a propósito dos traços salientes da via de Cristo, cujo «alimento é fazer a vontade d’Aquele que O enviou e consumar a sua obra» (Jo 4, 34). Jesus não vive uma união mais íntima e mais estreita com o Pai, do que esta, que, para Ele, se traduz continuamente numa oração profunda. A vontade do Pai envia-O aos homens, aos pecadores; mais: aos seus assassinos; e Ele não pode estar mais intimamente unido ao Pai do que obedecendo à sua vontade (como exemplo de uma forma de exercícios segura temos os Exercícios Inacianos, quando bem aplicados, e também os Exercícios de Santa Gertrudes de Helfta, aqui)
… Dentre tais «fragmentos» deve-se nomear, em primeiro lugar, a aceitação humilde dum mestre experimentado na vida de oração e das suas diretrizes; deste aspecto sempre se teve consciência na experiência cristã desde os tempos antigos, em particular desde a época dos Padres do deserto.
A tardia era clássica não cristã distinguia, de bom grado, três estádios na vida de perfeição: as vias da purificação, da iluminação e da união. Tal doutrina serviu de modelo para muitas escolas de espiritualidade cristã. O esquema, em si válido, carece todavia de alguns esclarecimentos que permitam uma sua correta interpretação cristã, evitando perigosos equívocos.
A procura de Deus através da oração deve ser precedida e acompanhada pela ascese e pela purificação dos próprios pecados e erros, porque, segundo a palavra de Jesus, somente «os puros de coração verão a Deus» (Mt 5, 8)… (ver o exemplo das meditações de Dom Bosco, aqui). Não são as paixões enquanto tais que são negativas (como pensavam os estóicos e os neoplatônicos): mas a sua tendência egoísta. É dela que o cristão se deve libertar, para chegar àquele estado de liberdade positiva que a era clássica cristã chamava «apátheia», a Idade Média «impassibilitas», e os Exercícios Espirituais de Santo Inácio «indiferencia».
… No caminho da vida cristã, à purificação segue a iluminação mediante o amor que o Pai nos dá no Filho e a unção que d’Ele recebemos no Espírito Santo (cfr. 1 Jo 2,20). Desde a antiguidade cristã, fala-se da «iluminação», recebida no Batismo. É ela que introduz os fiéis, iniciados nos divinos mistérios, no conhecimento de Cristo, mediante a fé que age por meio da caridade.
… O cristão orante pode finalmente chegar, se Deus o quer, a uma experiência particular de união. Os sacramentos, sobretudo o Batismo e a Eucaristia, constituem o início objetivo da união do cristão com Deus. Por intermédio duma especial graça do Espírito, o orante pode ser chamado, sobre este fundamento, àquele tipo peculiar de união com Deus que, no ambiente cristão, é qualificado como mística… A mística cristã autêntica não tem nada a ver com a técnica: é sempre um dom de Deus, do qual se sente indigno quem dele beneficia.
Há determinadas graças místicas, conferidas, por exemplo, aos fundadores de instituições eclesiais em favor de toda a fundação, e também a outros santos, as quais graças caracterizam a sua peculiar experiência de oração e não podem, como tais, ser objeto de imitação e da aspiração por parte doutros fiéis, mesmo pertencentes àquela instituição, e desejosos duma oração sempre mais perfeita.
… A meditação cristã do Oriente valorizou o simbolismo psicofísico, frequentemente ausente na oração do Ocidente. Tal simbolismo pode ir duma determinada atitude corpórea até às funções vitais fundamentais, como a respiração e o pulsar do coração. O exercício da «oração de Jesus», por exemplo, adaptando-se ao ritmo respiratório natural, — pelo menos por um certo tempo — pode ser útil para muitos (Papa está falando da oração dos Padres do Deserto, conhecida como "Oração de Jesus", que é a repetição do "Jesus tem piedade de mim").
Alguns exercícios físicos produzem automaticamente sensações de repouso e de distensão, que são sentimentos gratificantes; podem talvez até produzir fenômenos de luz e de calor, que se assemelham a um bem-estar espiritual. Trocá-los, porém, por autênticas consolações do Espírito Santo, seria um modo totalmente errôneo de conceber o caminho espiritual. Atribuir-lhes significados simbólicos típicos da experiência mística, quando o comportamento moral do praticante não está à sua altura, representaria uma espécie de esquizofrenia mental, o que pode conduzir até a perturbações psíquicas e, em certos casos, a aberrações morais.
Convém recordar, todavia, que a união habitual com Deus, ou aquela atitude de vigilância interior e de invocação do auxílio divino que, no Novo Testamento, é chamada a «oração contínua», não se interrompe necessariamente quando nos dedicamos também, segundo a vontade de Deus, ao trabalho e ao cuidado do próximo.
… Recomendando a toda a Igreja o exemplo e a doutrina de Santa Teresa de Jesus, a qual, no seu tempo, teve de enfrentar a tentação de certos métodos que incitavam a prescindir da humanidade de Cristo, em favor duma vaga imersão no abismo da Divindade, o Papa João Paulo II dizia numa homilia do dia 1 de Novembro de 1982, que o apelo de Teresa de Jesus em favor duma oração toda centrada em Cristo «é válido também nos nossos dias, contra certos métodos de oração que não se inspiram no Evangelho e que, praticamente, tendem a prescindir de Cristo, em favor dum vazio mental que no cristianismo não tem sentido».
Observações do Papa Emérito sobre os termos usados :
A pseudo-gnose considerava a matéria como algo de impuro, de degradado, que envolvia a alma numa ignorância, de que a oração devia livrá-la, para a elevar ao conhecimento superior e portanto à pureza. Certamente, não todos eram capazes de tal elevação, mas só os homens verdadeiramente espirituais; para os simples fiéis bastavam a fé e a observância dos mandamentos de Cristo.
Aquele que adquiriu a impassibilidade (no grego: apatheia) e o conhecimento espiritual (no grego: gnosis).
Mestre Eckhart fala duma imersão « no abismo indeterminado da divindade », que é uma « treva na qual a luz da Trindade nunca refulgiu ». Cfr. Sermo “Ave gratia plena”, no fim (J. QUINT, Deutsche Predigten und Traktate, Hanser 1955, 261). (Sobre a influencia de Mestre Eckart no entendimento da espiritualidade aqui)
O sentido cristão positivo do « esvaziamento » das criaturas resplandece de modo exemplar no « Poverello » de Assis. S. Francisco, pelo facto de ter renunciado às criaturas por amor do Senhor, contempla-as todas cheias da sua presença e refulgentes na sua dignidade de criaturas de Deus; pelo que entoa a secreta melodia do ser no seu Cântico das criaturas (cfr. C. Esser, Opuscula sancti Francisci Assisiensis, Ed. Ad Claras aquas, Grottaferrata (Roma) 1978, pp. 83-86). No mesmo sentido escreve na « Carta a todos os fiéis »: « Cada criatura que se encontra no céu e na terra e no mar e na profundidade dos abismos (Ap. 5, 13), tribute a Deus louvor, glória e honra e o abençoe, pois Ele é a nossa vida e a nossa força. Ele que é o único bom (Lc. 18, 19), que é o único altíssimo, omnipotente e admirável, glorioso e santo, digno de louvor e bendito pelos infinitos séculos dos séculos. Amen » (ibidem, Opuscula …, 124). S. Boaventura faz observar como em cada criatura Francisco percebia o apelo de Deus e efundia a sua alma no grande hino de reconhecimento e de louvor (cfr. Legenda S. Francisci, cap. 9, n. 1, in Opera Omnia, ed. Quaracchi 1898, Vol. VIII, p. 530).
O exercício da « oração de Jesus », que consiste em repetir uma fórmula densa de pontos de referência bíblicos de invocação e de súplica (por exemplo: « Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim »), adapta-se ao ritmo respiratório natural. Veja-se a este propósito: Santo Inácio de Loyola, Ejercicios espirituales, n. 258.
Observação Ana Paula Barros:
Como pode notar o termo gnóstico, dentro da espiritualidade dos Padres do Deserto, era a busca do conhecimento espiritual, por isso todo cristão era de alguma forma um "monge", ou seja, um buscador.
Temos uma definição mais indecorosa do termo, que se refere, em suma, a uma corrente religiosa- filosófica que possui um sincretismo religioso em suas bases, alicerçado em interpretações de relatos bíblicos e apócrifos pelo viés filosófico médio-platônico (forma de platonismo que surgiu após a morte de Antíoco de Ascalão, filósofo acadêmico eclético do século I a.C.) e de cultos de mistérios greco-romanos e orientais. Mesclara-se ao cristianismo primitivo dos primeiros séculos desta era (era cristã), e fora condenado como heresia após um período de prestígio entre os intelectuais cristãos (e parece que ainda não acabou o seu prestígio).
Outra forma que o termo vêm sendo usado é como uma afronta àqueles que buscam conhecimento pelo conhecimento (realmente ou aparentemente), num uso mais superficial em riqueza de significado.
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