Comentários de São João Crisóstomo sobre a Carta aos Gálatas
Introdução
Este é um material de apoio do Projeto de Leitura Bíblica: Lendo a Bíblia, para baixar o calendário de leitura bíblica e os outros textos de apoio dos Doutores da Igreja , online e pdf, sobre cada livro da Bíblia, clique aqui.
Este projeto é um dos ramos de uma árvore de conteúdos planejados especificamente para o seu enriquecimento. Os projetos que compõem esta árvore são: Projeto de Leitura Bíblica com textos de apoio dos Doutores da Igreja (baixar gratuitamente aqui), Plano de Vida Espiritual (baixar gratuitamente aqui), o Clube Aberto de Leitura Conjunta Salus in Caritate, com resenha e materiais de apoio (para ver a lista de livros, materiais e os cupons de desconto 2020 clique aqui) e o Salus in Caritate Podcast (ouça em sua plataforma preferida aqui).
O QUE É UM DOUTOR DA IGREJA?
Os Doutores da Igreja são homens e mulheres ilustres que, pela sua santidade,
pela ortodoxia de sua fé, e principalmente pelo eminente saber teológico,
atestado por escritos vários, foram honrados com tal título por desígnio da Igreja.
Os Doutores se assemelham aos Padres da Igreja, dos quais também diferem.
Padres da Igreja são aqueles cristãos (Bispos, presbíteros, diáconos ou leigos) que
contribuíram eficazmente para a reta formulação das verdades da fé (SS.
Trindade, Encarnação do Verbo, Igreja, Sacramentos. ..) nos tempos dos grandes
debates e heresias. O seu período se encerra em 604 (com a morte de S. Gregório
Magno) no Ocidente e em 749 (com a morte de S. João Damasceno) no Oriente.
Para que alguém seja considerado Padre da Igreja, requer-se antiguidade (até os
séculos VII/VIII), ao passo que isto não ocorre com um Doutor.Para os Padres da
Igreja, basta o reconhecimento concreto, não explicitado, da Igreja, ao passo que
para os Doutores se requer uma proclamação explicita feita por um Papa ou por
um Concílio. Para os Padres, não se requer um saber extraordinário, ao passo que
para um Doutor se exige um saber de grande vulto.
EM SUMA
Doutor da Igreja é aquele cristão ou aquela cristã que se distinguiu por notório
saber teológico em qualquer época da história. O conceito de Doutor da Igreja
difere do de Padre da Igreja, pois Padre da Igreja é somente aquele que
contribuiu para a reta formulação dos artigos da fé até o século VII no Ocidente e
até o século VIII no Oriente. Há Padres da Igreja que são Doutores. Assim os
quatro maiores Padres latinos (S. Ambrósio, S. Agostinho, S. Jerônimo e S.
Gregório Magno) e os quatro maiores Padres gregos (S. Atanásio, S. Basílio, S.
Gregório de Nazianzeno e S. João Crisóstomo).
Portanto, o parecer de um Doutor da Igreja é maior do que achismos,
independente do assunto em estudo ou discussão.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Doutor da Igreja, Boca de Ouro, Alma de Anjo e Coração de Pai.
João nasceu com alma monástica, tanto que, por duas vezes passou anos no
silêncio do deserto; por causa da precária saúde voltou da vivência religiosa
mais retirada e em Antioquia foi ordenado sacerdote.
Famoso devido ao seu dom de comunicar a Palavra de Deus, Crisóstomo não
demorou a abraçar a cruz do governo pastoral da diocese de Constantinopla, já
que o imperador fez de tudo para isto.
Ao perceber a má formação do clero, entregue à ambição e à avareza, o santo
começou a exigir vida de pobreza e simplicidade evangélica daqueles que
precisavam ser exemplo para o rebanho.
Devido aos naturais atritos com o
clero e fervorosas pregações contra o luxo e imoralidades da vida social, São
João teve problema com a imperatriz Eudóxia, que começou o movimento
causador dos seus dois exílios, sendo que no último, os sofrimentos da longa
viagem e os maus tratos foram mortais!
Amado pelo povo e respeitado por todos, São João Crisóstomo morreu em 407
e deixou, além do belo testemunho dos dez anos de pontificado, suas últimas
palavras as quais resumiram sua vida: “Glória seja dada a Deus em tudo!”.
São João Crisóstomo, rogai por nós!
Oração
"Protegei-nos Senhor, concedeu-nos santos sacerdotes e leigos. Agradecemos
por nos dar São João Crisóstomo como pai e professor em meio as trevas desse
mundo que nos quer afastar de Vós. Agradecemos Senhor, pois nunca nos
abandonou."
IGREJA DA GALÁCIA
A província da Galácia se localizava na Asia Menor e abrangia os territórios da
Frigia, Panfília, Licaônia e Galácia.
A igreja foi fundada por São Paulo em uma de suas primeiras viagens missionária,
como podemos ler em Atos 13 ,1 e 14, 26; nessa passagem vemos também o
ocorrido em Listra, onde Paulo e Barnabé foram confundidos com deuses,
rangaram as vestes, depois foram perseguidos pelos judeus.
Esse foi "o tom" da
fundação da Igreja na Galácia.
COMENTÁRIOS
O prólogo é vigoroso e cheio de afeto, e de certo modo, não só o proêmio, mas a
epístola inteira. Com efeito, dirigir-se sempre com moderação aos discípulos
necessitados de severidade, não condiz com um mestre, e sim com um sedutor e
inimigo. Por este motivo, igualmente, o Senhor, que falava aos discípulos com
muita mansidão, algumas vezes utilizou linguagem mais severa, e ora felicitava,
ora censurava. Assim, tendo dito a Pedro: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de
Jonas” (Mt 16,17), e prometido que os fundamentos da Igreja repousariam sobre a
pedra de sua confissão, não muito depois, lhe disse: “Arreda-te de mim, Satanás!
Tu me serves de pedra de tropeço” (Mt 16,23), e em outra passagem mais uma
vez: “Nem mesmo vós tendes inteligência?” (Mt 15,16). Tanto respeito lhes
inspirava que João narra que, ao vê-lo falar com a mulher samaritana acerca do
alimento, “nenhum deles lhe perguntou: ‘Por que falas com ela?’, ou: ‘Que
desejas?’” (Jo 4,27).
Paulo, aprendendo a lição e seguindo as pegadas do mestre, se adapta às
necessidades dos discípulos, e ora cauteriza e corta, ora aplica remédios mais
suaves. E dizia aos coríntios: “Que preferis? Que eu vos visite com vara ou com
amor e em espírito de mansidão?” (1Cor 4,21). Aos gálatas, porém: “Ó gálatas
insensatos” (Gl 6,16). Não foi somente uma vez, mas por duas vezes que utilizou
esta repreensão. Além disso, no final da epístola, investe: “Ninguém mais me
moleste” (Gl 6,7). De outras vezes suaviza o tom. Assim: “Meus filhinhos, por quem
eu sofro de novo as dores do parto” (Gl 4,19), e outras palavras semelhantes.
De resto, é evidente a todos desde a primeira leitura que esta epístola é
impetuosa.
Convém expor o que provocava a ira do Apóstolo contra os discípulos. Não era
coisa pequena nem insignificante; do contrário, não os teria perseguido tanto. De
fato, é próprio do homem pusilânime, rude e mísero irritar-se por qualquer
motivo, e peculiar ao mais preguiçoso e sonolento recuar diante de problemas
importantes. Mas Paulo não era dos tais. Qual era, então, o pecado que tanto o
abalava? Certamente era grande,
excessivamente grave e os apartava a todos de Cristo, conforme diz em seguida:
“Atenção! Eu, Paulo, vos digo: Se vos fizerdes circuncidar, Cristo de nada vos
servirá” (Gl 5,2).
Não foi somente numa cidade, nem em duas ou três, mas em toda a nação dos
gálatas que o incêndio deste erro se propagara. Vê a intensa indignação do
Apóstolo. Não disse: Caríssimos, nem: Santificados e sim: “Às Igrejas da Galácia”.
Era sinal de grande aborrecimento e de sua dor não chamá-los com um apelativo
amigável, nem respeitosamente com o próprio nome, mas somente pelo da
assembleia. E não aditou: Igrejas de Deus, mas disse simplesmente: “Às Igrejas da
Galácia”. Embora em outra passagem no próprio prefácio logo se apressa a reduzir
à concórdia o dissídio entre eles; por isso, colocou o nome de Igreja, incutindo-lhes pudor e impelindo-os à unidade.
De fato, os que se dividem em vários
partidos não podem de forma alguma receber este nome; na verdade, o nome de
Igreja é denominação de concórdia e unanimidade.
Ao dizer, portanto, que eles se apartaram do Pai, atribui-lhes dupla culpa, a saber,
que se afastaram, e o fizeram rapidamente. Na verdade, é merecedor de
repreensão quem se aparta depois de muito tempo, mas quem cai na primeira
investida e no próprio lançamento das setas, oferece um exemplo de extrema
tolice. Com tal nome ele os acusa, dizendo: Por que os vossos sedutores nem de
espaço de tempo precisam, mas basta-lhes o primeiro acesso para vos subverter e
captar? Que perdão podeis impetrar?
Mas há alguns que vos estão perturbando e querendo corromper o evangelho de
Cristo.
Isto é, não conhecereis outro evangelho, enquanto tiveres um julgamento correto,
enquanto não for distorcida tua visão, imaginando o que não existe. Como o olho
turvo vê uma coisa por outra, assim a mente perturbada pela confusão de maus
pensamentos costuma padecer o mesmo. Por isso os que estão loucos imaginam
uma coisa por outra.
Na verdade, esta loucura é mais perigosa do que aquela, porque não ocasiona
prejuízo a respeito das coisas sensíveis, mas das inteligíveis, não danifica a
pupila dos olhos corporais, mas subverte os olhos do espírito. “Querendo
corromper o evangelho de Cristo.” Ora, eles introduziram um ou outro preceito,
restabelecendo só a circuncisão e a observância dos dias. Mas, para indicar que
um pequeno erro corrompe o todo, Paulo diz que corrompe o evangelho. Se
alguém apagar um pouco a figura impressa numa moeda régia falsifica a moeda
inteira; assim quem corromper a mínima partícula da fé ortodoxa, estraga o todo,
e deste início procede a erros piores.
Onde estão os que nos condenam como contenciosos, porque disputamos com os hereges?
Onde estão os que murmuram que não há diferença entre nós e eles, mas que a discórdia
provém da ambição de poder? Ouçam o que Paulo diz, a saber, que corromperam o
evangelho os que reintroduziram uma pequena novidade.
Não é possível, não é. A causa de todos os males consiste em que não nos importamos com estas
coisas pequenas. Por isso cometeram os crimes maiores porque os menores não encontraram a
adequada correção. Como relativamente aos corpos, os que negligenciam cuidar das feridas,
contraem febre, gangrena e por fim advém a morte, assim, em relação às almas, os que
menosprezam as coisas pequenas acarretam as grandes.
Aquele homem, diz-se, resvalou quanto ao jejum, o que não importa; um outro tem a
verdadeira fé, mas disfarça por oportunismo e renuncia à ousadia de confessar; nem isso é
grave. Um outro, irritado, ameaçou abandonar a fé verdadeira; nem este merece castigo,
replicas, porque pecou num movimento de ira e furor. Encontram-se diariamente pecados
desta espécie cometidos nas Igrejas. Por esse motivo, tornamo-nos ridículos diante dos
judeus e dos gentios, enquanto a Igreja se divide em mil partes.
Com efeito, se desde o início fosse empregada conveniente admoestação aos que se
entregavam à transgressão dos preceitos divinos e tentavam fazer um pouco além do que
é devido, não teria aparecido de forma alguma esta peste, nem haveria irrompido tão
grande tempestade nas Igrejas.
E por que falar das observâncias judaicas? Dentre os nossos alguns guardam costumes
pagãos, observam presságios, voos de aves, dias e símbolos, superstições sobre os
nascimentos e letras cheias de toda impiedade, que para seu grande mal são impostas na
cabeça das crianças recém-nascidas, ensinando-lhes desde o começo a rejeitar o zelo na
aquisição das virtudes e sujeitando-as à tirania do destino falaz.
Se Cristo não é de proveito algum aos que se circuncidam, o que adiantará a fé para a
salvação destes, contra os quais tantos males investem? Entretanto a circuncisão fora
dada por Deus; mas como causava dano ao evangelho, quando observada fora do tempo
oportuno, Paulo fez o possível por aboli-la.
Além disso, como Paulo tinha tanto empenho
em abolir os costumes judaicos, porque obsoletos, nós nem os hábitos pagãos cortaremos?
Que escusa teremos? Por estas razões, nossas vidas acham-se envolvidas em tumulto e
agitação, e os que deviam ser discípulos, inchados de soberba, subverteram a ordem e
tudo se acha revolucionado. Se alguém os acusar, mesmo levemente, cospem com
desprezo contra os chefes, porque os educamos mal. Ora, mesmo se os que governam
fossem ímprobos e estivessem repletos de milhares de vícios, nem assim o discípulo teria
o direito de desobedecer. Se não é permitido julgar o próximo, quanto mais proibido será
julgar os doutores?
Vê que (Paulo) teve maior amizade a Pedro, porque por sua causa empreendera a viagem,
e demorou-se junto dele. Repito-vos isso constantemente e quero que guardeis na
memória, de sorte que, se ouvirdes algo que pareça o Apóstolo ter dito contra Pedro, não
tenhas suspeitas falsas. De fato, é por isso que ele assim se exprime, prevenindo, como ao
dizer: “Eu enfrentei a Pedro” (cf. Gl 2,11). Não se julgue que estas palavras são de
inimizade ou de rixa, pois ele o honra e ama mais do que a todos.
Efetivamente, por causa
de nenhum outro apóstolo narra que subiu a Jerusalém, mas somente por causa dele. “Não
vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago.” “Vi”, assegura, e não: Recebi dele uma
instrução. Mas observa com que respeito o nomeia. Não disse simplesmente: Tiago, mas
acrescentou respeitoso elogio: “O irmão do Senhor”, a tal ponto estava isento de inveja.
De fato, se quisesse indicar de quem falava, poderia colocar outra nota e dizer: Tiago de
Clopas, cognome usado pelo evangelista João (Jo 19,25). Mas não se exprimiu deste modo,
porque considerava os títulos honoríficos dos apóstolos como seus, e uma honra para si
próprio, e por isso o reverencia.
Não o denominou desta forma, conforme disse; de qual,
então? “O irmão do Senhor.” Ora, não era irmão do Senhor segundo a carne, mas assim era
considerado; nem por isso deixou de dar-lhe o título honorífico. Aliás, Paulo muitas outras
vezes demonstrou afeto sincero aos apóstolos, o que era, de fato, conveniente.
Muitos que leem pouco atentamente esta passagem da epístola, julgam que Paulo acusou
a Pedro de hipocrisia, mas não foi assim, de forma alguma. Descobrimos aqui disfarçada
muita prudência tanto da parte de Pedro quanto de Paulo, visando ao bem dos ouvintes.
Com efeito, os apóstolos, conforme narrei, em Jerusalém permitiam a circuncisão. Não
podiam de repente afastá-los da Lei. Quando, porém, foram para Antioquia, já não
praticavam essas observâncias, mas relativamente aos que acreditaram dentre os gentios,
viviam sem diferenças. Certamente Pedro também o fazia. Mas, quando vieram alguns da
cidade de Jerusalém, que os viram pregando assim, não o fazia mais, temendo que eles se
escandalizassem, mas subtraía-se, agindo por condescendência com dois resultados: de
um lado, não se escandalizavam os judeus, mas de outro, oferecia a Paulo oportunidade de
censurá-lo com justeza. De fato, se aquele que pregava em Jerusalém permitindo a
circuncisão, mudasse em Antioquia, pareceria aos judeus que acreditaram que agia assim
por medo de Paulo e os discípulos o censurariam por empregar grande facilidade e
causaria grande escândalo, embora a Paulo, que perfeitamente conhecia o motivo da
mudança, sua recusa não causava nenhuma suspeita, porque sabia com que disposição
assim procedia. Por conseguinte, Paulo censura e Pedro aceita.
Enquanto o mestre cala ao
ser censurado, mais facilmente os discípulos mudariam de parecer.
Com efeito, se na realidade tivesse havido entre eles disputa, de forma alguma haveriam
se censurado mutuamente na presença dos discípulos, porque teriam causado grande
escândalo. Em nosso caso, era útil a discordância em público.
A força da fé
“A vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado.” Ora, ele não
foi crucificado na região dos gálatas, mas em Jerusalém. Como, pois, ele diz: “A vós”? Foi a
fim de mostrar a força da fé, pela qual se torna possível discernir o que está longe. E não
disse: Foi crucificado, e sim: “Foi desenhada a imagem do crucificado”, indicando que com
os olhos da fé alguns viram mais exatamente do que alguns que estavam presentes e
olhavam o que sucedia.
Efetivamente, muitos daqueles que assistiram [à crucifixão]
nenhum fruto retiraram; os que, porém, não viram com os próprios olhos, pela fé viram
com maior evidência.
Sobre a Lei
De modo algum é supérflua. Vês que ele supervisiona tudo, como se tivesse inúmeros
olhos? Havia enaltecido a fé, enquanto anterior à Lei; a fim de evitar que alguém julgasse
a Lei supérflua, emenda, demonstrando que não fora em vão, mas muito útil: “Foi
acrescentada em vista das transgressões”, isto é, para não permitir aos judeus viverem em
segurança, e resvalarem na maior malícia, mas impor-lhes a Lei à guisa de freio,
instruindo, regulando, proibindo as transgressões, se não de todos, ao menos de alguns
preceitos. Não foi, portanto, pequeno o fruto proveniente da Lei. Mas até quando? – Até
que viesse a descendência, a quem fora feita a promessa.
Ora, se a Lei foi dada para
abranger a todos, isto é, coagir e manifestar-lhes os pecados, não somente não obsta a
que consigas a realização das promessas, mas ainda contribui para alcançá-las.
Na verdade, se a Lei não tivesse sido dada, todos se revolveriam na malícia, nenhum judeu
ouviria a Cristo; agora, porém, a Lei dada prestou-nos estes dois bens: um, ao ensinar uma
virtude comedida àqueles que lhe davam atenção, e outro, ao persuadir a que
reconhecessem os próprios pecados, o que os tornava mais inclinados a procurar o Filho.
Em consequência, os que não acreditavam na Lei, por não condenarem os próprios
pecados, não acreditaram em Cristo. Apontando para isso, ele diz: “Desconhecendo a
justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de
Deus” (Rm 10, 3).
“Vos revestistes de Cristo”, nem com esta palavra se contentou, mas explanando-a vai à
união mais íntima e diz: “Pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”, isto é, todos tendes
uma só forma, um só modelo, a saber, o de Cristo.
O que há de mais estupendo e respeitável do que tais palavras? Quem antes era gentio,
judeu ou escravo, agora não se acha na condição de um anjo, de um arcanjo, mas na do
Senhor do universo, representando Cristo em si.
Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne.
Aqui já parece partir para um sermão moral. Emprega uma novidade que em nenhuma das
outras epístolas aparece. Em todas costuma fazer uma divisão em duas partes, de sorte
que na primeira trata dos dogmas, na segunda fala dos costumes; aqui, começa tratando
dos costumes, e depois insere uma dissertação sobre os dogmas.
Mas o que quer dizer: “Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne”?
Cristo, diz ele, nos libertou do jugo da escravidão, quis que fosse livre a vontade, não a
fim de abusarmos deste poder para o mal, mas para termos oportunidade de obter prêmio
maior, após progredirmos em direção duma sabedoria mais elevada. De fato, após ter
denominado a Lei, em todos os sentidos, jugo da servidão, e chamado à graça de
libertação da maldição, a fim de evitar a suspeita de que estava ordenando o afastamento
da Lei por ser lícito levar uma vida fora da Lei, corrige esta suspeita, dizendo: Não é para
que se leve uma vida ilegítima, mas para transcender a Lei pela Sabedoria.
Não me
exprimo esta forma para ficarmos mais abatidos, mas para subirmos mais alto. Com efeito,
tanto o que fornica quanto aquele que persevera na virgindade, ultrapassa os termos da
Lei, mas não da mesma forma; um cai de forma péssima, outro se eleva a um grau mais
alto, de sorte que um transgride a Lei, outro a ultrapassa.
Eis que indica outro caminho que facilita a virtude, e realiza bem o que foi dito, o
caminho que gera a caridade, e que preme pela caridade. Nada de fato, nada, diria, de tal
modo insere em nós a caridade como sermos espirituais, nem persuade igualmente ao
Espírito que permaneça em nós senão a força da caridade. Por isso diz: “Conduzi-vos pelo
Espírito e não satisfareis os desejos da carne”.
Visto que expusera o que produzia a
doença, igualmente receita o remédio que cura. Qual é e qual a força das palavras corretas
senão viver pelo Espírito? Por isso diz: “Conduzi-vos pelo Espírito e não satisfareis os
desejos da carne”.
O que diz, portanto? Denomina carne aqui o pensamento terrestre, indolente e covarde.
Não está acusando a carne, mas o crime da alma negligente; na verdade a carne é
instrumento dela, mas ninguém tem aversão e ódio ao instrumento, mas àquele que o
utiliza mal. Não é ao ferro, mas ao homicida que odiamos e punimos.
Lei e Espírito
Qual a consequência? Máxima e evidente. De fato, quem se deixa guiar pelo Espírito, como
convém, por meio dele extingue todo o mau desejo.
Mas quem deles se libertou não precisa do auxílio da Lei, tendo se tornado muito superior
àqueles preceitos. De fato, quem não se irrita, por que precisa ouvir: Não matarás? Quem não
olha com olhos intemperantes por que há de aprender que não deve cometer adultério? Quem
lhe falará do fruto da maldade, se já arrancou-a pela raiz? A raiz do homicídio é a ira, e a raiz
do adultério é o olhar indiscreto. Por isso, ele diz: “Se vos deixais guiar pelo Espírito, não
estais debaixo da Lei."
Fruto do Espírito
Porque as más obras vêm somente de nós, e por isso se chamam obras; as boas, porém,
não só exigem nossos cuidados, mas precisam da divina bondade. Em seguida, estando
para descrevê-las, primeiro coloca a raiz dos bens, dizendo: caridade, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade... Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito
pautemos também nossa conduta. Estabeleçamos nossa vida segundo suas leis. É o
seguinte o sentido das palavras: “Pautemos nossa conduta”, isto é, contentemo-nos com a
força do Espírito.
"Vós, os espirituais, corrigi-o..."
Não disse: Puni, ou condenais, e sim: “Corrigi. Não se detém aí, mas para mostrar que
deviam ser muito mansos para com os que foram suplantados, assim termina: com espírito
de mansidão, Não disse: Com mansidão, e sim: “Com espírito de mansidão”, afirmando que
isso também apraz ao Espírito, porque, na verdade, o próprio fato de poder corrigir com
equidade os pecadores é um dom espiritual. Em seguida, no intuito de que aquele que
corrige não se exalte, submete-o ao mesmo temor, dizendo: cuidando de ti mesmo, para
que também tu não sejas tentado.
Quanto às sementes, quem semeia cevada não pode colher trigo, porque a semeadura e a
messe devem ser da mesma espécie. Assim deve acontecer relativamente às obras. Quem jogar
na carne saciedade, embriaguez, maus desejos, colherá o fruto que brotar. Qual? Suplício,
castigo, opróbrio, zombaria, podridão. De fato, nada resulta das mesas suntuosas e das
iguarias senão a corrupção; simultaneamente elas se corrompem e arruínam a saúde do corpo.
As realidades espirituais, porém, não são tais, mas exatamente o oposto. Pondera o seguinte:
Semeaste esmola, ser-te-ão reservados tesouros celestes e glória sempiterna. Semeaste
temperança, receberás honra e prêmio, congratulações dos anjos e coroas.
Denomina nova criatura o nosso estilo de vida, tanto por causa do passado como do futuro.
Do passado, na verdade, porque nossa alma que envelhecera na vetustez do pecado, de
repente pelo batismo foi renovada como se fosse recriada. Por isso também exige-se de
nós novo e celeste estilo de vida. Do futuro, porque o céu e a terra e enfim toda criação
passarão à incorruptibilidade, conjuntamente com nossos corpos.
Trechos retirados do livro Patrística: Comentários de São João Crisóstomo/1, pg 301-370.
2 comments
Saudações Ana Paula, meu nome é Evandro e eu tenho algumas dúvidas, se caso puder me ajudar: a bíblia fala que não devemos adorar a falsos deuses. O que o texto quer dizer? Quem são esses deuses? Qual o nosso verdadeiro papel na obra redentora? Porque Cristo condenou a religião, idolatria e paganismo? Pra que tanta religião se o único bom exemplo bíblico é Cristo? Agradeço por sua atenção!
ResponderExcluirPaz e Bem, Evandro! Os falsos deuses são qualquer coisa ou pessoa que toma um lugar divindade e ocupa no nosso coração o lugar de adoração que de Deus. Os falsos deuses portanto pode ser um mau comportamento, um objeto, um amor desornado, uma pessoa.
ExcluirNosso papel na obra redentora é, como Igreja, portanto membros do Corpo Místico de Cristo, seguir os mesmos passos que a Cabeça, ou seja Nosso Senhor seguiu. Assim, cada membro do corpo místico vivendo a fé católica e se unindo à Cabeça pelos Sacramentos, vivifica em si a redenção e a ressurreição e a sua presença no mundo é ponte para a redenção do mundo. Alguns contribuem mais ou menos na obra da redenção conforme a sua disponibilidade em tornar real em si a meta da santificação.
Cristo não condenou a religião. A religião é uma virtude inclusive, chama-se virtude da religiosidade, que se refere a dar a Deus o que é Deus, é uma virtude que nasce da virtude cardeal da Justiça, por isso que existe a religião, é justiça e salvação dar a Deus o que é Deus. A idolatria e o paganismo são cultos devido aos demônios e não a Deus (também o culto a Deus através de seus anjos e santos, que é um agir já dos judeus, que possuem o devido respeito aos patriarcas judeus e aos sadics, homens santos que barram a justiça divina, por exemplo).
A religião é uma virtude, normalmente, ao se dizer que não é necessário a religião a pessoa diz que não gosta de regras e quer tirar das Sagradas Escrituras o que lhe apetece, negando com isso o reinado do Senhor, inclusive é a razão da atual crise moderna, as pessoas seguem o evangelho segundo o próprio umbigo e criam um Jesus que nada tem com o Evangelho, porque foi criado baseado em alguns versículos isolados, conforme o gosto de quem está lendo.
Espero que tenha sido feliz em responder! Paz e Bem!
Olá, Paz e Bem! Que bom tê-lo por aqui! Agradeço por deixar sua partilha.