Comentários sobre a Carta aos Colossenses de São João Crisóstomo, Padre da Igreja, Arcebispo de Constantinopla

by - junho 09, 2020



Comentários SOBRE A CARTA AOS COLOSSENSES DE SÃO JOÃO  CRISÓSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA



Introdução

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Colossas



Colossas (em grego: Κολοσσαί; em latim: Colossae; também conhecida como Conas (Chonae) ou Cona, atual Honaz), era uma cidade da Frígia, no rio Lico, um afluente do rio Meandro (atual Menderes). Estava situada cerca de 15 quilômetros a sudeste de Laodiceia, próximo à grande estrada que ligava Éfeso ao Eufrates. Suas ruínas, localizadas na atual província de Denizli na Turquia, nunca foram escavadas.

Durante o período helenista, a cidade adquiriu certa importância mercantil, embora tenha diminuído consideravelmente em importância e tamanho por volta do século I. Esta cidade entrou em declínio (possivelmente devido a um terremoto) e a cidade bizantina de Conas (Chonæ; Χῶναι) ocupou um sítio próximo às suas ruínas. Francis Arundell indica que parte ou todo o sítio original de Colossas mudou de nome para Cona ou Conas. A cidade foi o lugar de nascimento dos escritores gregos bizantinos Nicetas e Miguel Coniates.


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HOMILIAS SOBRE A CARTA AOS COLOSSENSES DE SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA

Santas são todas as cartas de Paulo, no entanto possuem algo a mais as que remeteu quando prisioneiro, tais como a carta aos Efésios, a Filemon, a Timóteo, aos Filipenses e a presente. Efetivamente, também esta foi enviada enquanto estava preso, conforme escreve: “Pelo qual estou prisioneiro, a fim de que eu dele fale como devo” (Cl 4,3-4).

Todavia, Paulo não vira os colossenses, nem os romanos, nem os hebreus, no momento em que lhes escrevia. Relativamente a estes últimos, pode-se verificar por muitas passagens; quanto aos primeiros, contudo, ouve o que ele assegura: “E por todos quantos não me conhecem pessoalmente”.
Nela fostes instruídos por Epafras, nosso querido companheiro de serviço É verossímil que ele ali tenha pregado. “Fostes instruídos” acerca do evangelho. Em seguida, mostrando que ele é fidedigno, declara: “Nosso companheiro de serviço”, que nos presta ajuda em vosso favor, como fiel ministro de Cristo, e é quem nos deu a conhecer o vosso amor no Espírito.

Empenhemo-nos em obter amizades segundo o espírito. São fortes e indissolúveis. Não as que se travam às mesas; pois não nos é lícito travá-las. Escuta como fala Cristo no evangelho: “Não convides os amigos, nem os vizinhos, para que não te retribuam do mesmo modo. Pelo contrário, chama estropiados, coxos” (Lc 14,12-13). E é certo; grande é a recompensa por este ato. Mas não podes, não suportas comer em companhia de coxos e cegos, consideras pesado e oneroso, e recusas? Certamente não se deve evitar, mas não é forçoso fazê-lo; se não queres que se sentem a teu lado, envia-lhes comida de tua mesa. Na verdade, quem convida amigos, não faz um ato grandioso e já recebeu a sua recompensa. Quem convida um estropiado e pobre, tem a Deus por devedor.

Por conseguinte, não nos aflijamos quando não recebemos recompensa aqui, e sim quando recebemos, por que então lá não a teremos. De modo semelhante, se um homem retribui, Deus não retribuirá; ao invés, se ele não retribui, então Deus recompensará. Não procuremos, portanto, fazer o bem aos que nos podem retribuir, nem os beneficiemos com tal expectativa; seria um cálculo frio.
Assim se passam as coisas aqui neste mundo. No entanto, lá, quando Cristo vier, um terá grande confiança, e ouvirá, na presença de todo o orbe: “Pois tive fome e me deste de comer. Estive nu e me vestiste. Era forasteiro e me recolheste” (Mt 25,35-36) etc. O outro, ao contrário, ouvirá: “Servo mau e preguiçoso”. E ainda: “Ai dos que estão estendidos em seus divãs, deitados em leitos de marfim, e bebem vinho generoso” (Am 6,4), e ungidos com unguentos primários, que consideravam como permanentes e não como fugidios.

Não proferimos estas coisas temerariamente, mas a fim de mudardes o modo de pensar e nada fazerdes que careça de proveito. Que importa, dizes, se faço isto ou aquilo? Esta sentença é repetida por muitos. Dize-me. Que necessidade há, quando é possível fazer tanto bem, de dividir, e consumir uma parte não somente em futilidades, mas também em vão e outra com bom proveito? Dize-me. Se ao semeares, lanças algumas sementes sobre a pedra, outras em terra ótima, isto te bastaria e dirias: Que importa, pois, se jogarmos algumas ao léu e outras em terra ótima? Por que não lanças todas em terra ótima? Por que diminuis o lucro? E ao se tratar de ajuntar riquezas, não dirás isto, mas ajuntarás de todos os lados; ali, contudo, de forma alguma. E se for preciso emprestar, não dirás: “Por que haveremos de dar algumas coisas aos pobres e outras aos ricos, e não tudo a estes? Aqui, no entanto, onde há tamanho lucro, por que não julgas assim, e não cessas de gastar em vão e inutilmente”? “Mas nisto há também lucro”, dizes. “Qual?” Responde-me. “Aumenta as amizades.” Nada há de mais frio que os amigos adquiridos através da mesa e da saciedade dos parasitas. Nada de mais ingrato do que a amizade que daí se origina. Não injuries a caridade, coisa tão admirável, nem digas que tal é a sua raiz. Seria como se alguém dissesse que uma árvore carregada de ouro e pedras preciosas, não tivesse raízes semelhantes, mas nascesse da podridão. É o que fazes; pois se daí nascesse amizade, nada seria mais gélido. Mas a outra mesa adquire amizades, não relativas aos homens, mas a Deus, e são intensas, porque baseadas em intenso amor. Pois quem gasta nesta e naquela, apesar de ter dado muito, nada de grandioso pratica; quem, porém, gasta tudo nesta, embora tenha dado pouco, faz tudo. De fato, não se pergunta se deu muito ou pouco, e sim se não doou menos do que pode dar. Pensemos naquele que lucrou cinco talentos e no que ganhou dois (cf. Mt 25). Meditemos acerca da viúva que deu duas moedinhas (cf. Lc 21) e daquela do tempo de Elias (cf. 1Rs,17).

Assim como nas competições estimulamos principalmente os que estão mais perto da vitória, Paulo exorta especialmente os que procederam da melhor forma. “Desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós.” Não rezamos por vós um dia só, ou dois ou três. Deste modo revela caridade e dá a entender aos poucos que eles ainda não atingiram a meta. É o significado das palavras: “Que sejais levados à plenitude”. Vê, entretanto, a prudência do santo.

“Para toda constância e longanimidade.” O que ele quer dizer é o seguinte: Em resumo, rezamos a fim de que tenhais uma vida virtuosa, digna de vossa cidadania e permanecei firmes, como importa aos que foram fortalecidos por Deus. Por conseguinte, até aqui ainda não atinge os dogmas, mas trata da vida, na qual nada tem a repreender; e como os louvasse no que deviam ser louvados, agora desce à acusação. Assim age em toda parte. Ao escrever, se tem algo a repreender e algo a louvar, primeiro louva e depois desce às incriminações. Em primeiro lugar, pois, torna benévolo o ouvinte e depois acusa de modo livre de qualquer suspeita e mostra que queria na verdade elogiar, mas a necessidade o impele a falar dessa maneira. É deste modo que age na Primeira aos Coríntios (1Cor 5). Na verdade, depois de os elogiar muito porque o amavam, desce à acusação daquele que cometera a fornicação. Na Carta aos Gálatas (Gl 1) não age assim, mas de modo oposto. Ou antes, se alguém a examinar, ali também o louvor contém uma acusação. De fato, não podia dizer que eles houvessem agido corretamente e a culpa era grave; todos se haviam corrompido e uma vez que podiam suportar pelo fato de serem fortes, começa pela acusação, dizendo: “Admiro-me” (Gl 1,6), o que constitui também elogio. Finalmente louva-os, não por causa dos atos presentes, mas dos passados, afirmando: “Se vos fosse possível, teríeis arrancado os olhos para dá-los a mim” (Gl 4,15).

Longanimidade entre si, paciência para com os de fora. É longânime alguém para com aqueles dos quais se pode vingar, tolera, porém, aqueles dos quais não se pode vingar. Por essa razão nunca se fala de paciência relativamente a Deus; quanto à longanimidade, muitas vezes se diz, conforme nesta carta o próprio santo escreve noutra passagem: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, tolerância e longanimidade” (Rm 2,4)? “

“e nos transferiu para o reino do seu Filho amado,”

Não somente demonstrou Deus o amor aos homens com a libertação das trevas. É de fato grandioso libertar das trevas; muito maior é introduzir no reino. Vê, portanto, que o dom é múltiplo: libertou-nos quando jazíamos nas profundezas, e não somente nos libertou, mas também trasladou para o reino.

Ninho é a vida presente, construído de palhas e barro. Mesmo que me mostrares grandes construções e o próprio palácio imperial, fulgurante de ouro e pedras preciosas, considerarei que em nada diferem dos ninhos das andorinhas. Logo que chega o inverno, tudo cai por si; denomino inverno aquele último dia, que absolutamente não é inverno. Deus denomina aquele tempo tanto noite como dia; respectivamente: noite, os pecadores, e dia, os justos. Nesse sentido, agora eu também chamo aquele dia de inverno. Se não nos desenvolvermos bem no verão, de sorte a voarmos no inverno, nossas mães não nos aceitarão, e nos deixarão morrer de fome, ou perecer com a queda do ninho. Pois assim como ao ninho, ou antes com maior facilidade, Deus tudo expurga então, destruindo, reparando e compondo todas as coisas. Os que não são alados, nem se encontram em condições de ir ao seu encontro no ar (cf. 1Ts 4,16), mas foram nutridos de forma tão grassa que não têm leves as asas, sofrerão o que é consentâneo aos que se acham em tais disposições. De fato, o ninho das andorinhas, se caírem, logo se perdem; nós, porém, não pereceremos, mas haveremos de ser eternamente castigados. Será inverno aquele tempo, ou antes, mais molesto que o inverno. Com efeito, não fluirão torrentes hibernais de águas, mas rios de fogo. Não existirá escuridão devido a um céu nublado, porém haverá trevas infinitas, sem um raio de luz, de sorte que não se divise o céu, ou o ar, mas as angústias serão maiores do que as dos que se acham em cavernas subterrâneas. Repetimos muitas vezes estas coisas, mas a alguns não conseguimos persuadir.

Por que recebes o batismo? Por que vais à igreja? Acaso prometemos o exercício do poder? Depositamos toda esperança nos bens futuros. Por que te aproximas, se não acreditas nas Escrituras, não crês em Cristo? A um tal não posso denominar cristão, de forma alguma, mas pior que um pagão. Por quê? Porque, julgando que Cristo é Deus, não lhe presta fé enquanto Deus. Naquele a descrença tem como consequência a impiedade: ao que não julga que Cristo é Deus, necessariamente não crê. No entanto, a própria impiedade não é consequente quando confessa que Deus existe e não julga ser fidedigno no que revelou. Apenas da embriaguez, das delícias, da intemperança libidinosa são próprias estas palavras: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1Cor 15,32). Não é amanhã; ao proferirdes estas palavras já estáveis mortos. Em nada, dizeme, diferimos dos porcos e dos asnos? Se, portanto, não há juízo, nem recompensa, nem remuneração, nem tribunal, porque somos dotados deste dom, isto é, da razão, e sujeitamos toda a criação? Por que nós, na verdade, dominamos, e ela obedece? Vê como o diabo em toda parte se empenha em nos levar a desconhecer o dom de Deus! Confunde os servos com os senhores; como um plagiário e servo ingrato, esforçase por reduzir o homem livre a idêntica abjeção que à de um escravo injuriador. E parece ter abolido o juízo, eliminado a existência de Deus. O diabo é sempre assim; propõe com artifícios e não diretamente, para não nos acautelarmos. Se não existe juízo, Deus não é justo. Expresso-me à maneira humana. Se, porém, Deus não é justo, Deus não existe. Se Deus não existe, simplesmente é abolido tudo, virtude e vício. Nada disso, contudo, ele declara abertamente. Concebes agora qual o plano diabólico? Como quer transformar os homens em feras, ou antes, em demônios? Não nos deixemos iludir. Com efeito, existe o juízo, ó mísero e infeliz! Sei de onde chegas a tais palavras. Cometeste muitos pecados, ofendeste a Deus, não tens liberdade e confiança de falar, julgas que a natureza das coisas é segundo teus dizeres.

Por que, então, nós nos enganamos a nós mesmos? Eis o que me dizes. O que dirás a Deus, que criou o coração de cada um de nós, conhece todos os nossos pensamentos, vive e opera; cuja palavra “é mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4,12)? Então, responde-me com veracidade: Não te condenas a ti mesmo quando pecas? Existe alguém que não censure a si mesmo quando age com indolência? E de onde surge espontaneamente a sabedoria que faz o pecador condenar a si mesmo? Efetivamente, isso constitui grande sabedoria. Tu te condenas a ti mesmo; aquele que te concedeu esta consciência, deixará todas as coisas ao acaso? Tal é, portanto, a regra universal e o limite: nenhum dos que vivem na virtude descrê da doutrina do juízo, mesmo que seja pagão ou herege; ninguém que vive no vício, exceto uns poucos, admite a doutrina da ressurreição. É isto o que diz o salmista: “Afastou os teus juízos de sua frente”. Por quê? “Porque os seus caminhos são sempre viciosos” (Sl 9,26). Dizem eles: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1Cor 15,32). Vês que são expressões próprias de homens vis? São termos atinentes ao comer e beber que podem arruinar a fé na ressurreição. Com efeito, a alma não suporta, não suporta o ditame da consciência. Assemelha-se ao homicida que primeiro se sugestiona que não será descoberto, e assim mata; pois, se ouvisse o juízo da consciência, não ousaria tão depressa admitir o crime. E por conseguinte, sabe, e finge ignorar, a fim de não ser atormentado pela consciência e o medo; de outra forma, seria menos resoluto para assassinar. De modo semelhante, sabe também o pecador que o pecado é um mal; e os que cotidianamente se envolvem em males, não querem saber, apesar das advertências da consciência. Mas não lhes demos atenção; pois haverá, sem dúvida alguma, juízo e ressurreição, e Deus não deixará em vão estas obras. Por esta razão, eu vos peço, abstendo-nos dos vícios, pratiquemos a virtude, a fim de acolhermos a verdade, em Cristo Jesus nosso Senhor.

A paz é um bem tão grande, que são chamados filhos de Deus os que a promovem e conciliam (cf. Mt 5,9). De fato, o Filho de Deus veio à terra no intuito de pacificar as coisas da terra e as dos céus. Se, porém, os pacíficos são filhos de Deus, os que se esforçam por perturbar com novidades são filhos do diabo. O que dizes? Provocas contendas e combates? E quem é, dizes, de tal modo infeliz? Existem muitos que se alegram com os males, e mais dilaceram o corpo de Cristo do que os soldados que lhe abriram o lado com a lança, ou os judeus que o trespassaram com os cravos. Era um mal menor, porque os membros feridos de novo se refizeram; estes, contudo, uma vez arrancados, a não ser que forem novamente enxertados, não se unem mais, e permanecem fora da plenitude da Igreja. Quando quiseres combater um irmão, pondera que fazes guerra a membros de Cristo e desiste do furor. Que importa se ele é abjeto, se é vil, desprezível? “Assim também, não é da vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um desses pequeninos se perca” (Mt 18,14). E ainda: “Seus anjos veem continuamente a face de meu Pai que está nos céus” (Mt 18,10). Por causa dele Deus tomou a condição de servo e foi morto. Tu, porém, julgas que ele nada é? Por conseguinte, lutas contra Deus, proferindo sentença oposta à sua. Ao entrar na igreja, o que preside logo diz: “A paz esteja com todos”; quando faz a homilia, profere: “A paz esteja com todos”; quando abençoa: “A paz esteja com todos”; quando saúda: “A paz esteja com todos”; quando consumou o sacrifício: “A paz esteja com todos”. E ainda, no meio: “A graça e a paz estejam convosco”. Como, então não seria absurdo, ouvindo tantas vezes a exigência de paz, lutarmos mutuamente, e ao recebê-la e retribuí-la, combater aquele que no-la transmite? Respondes: “E com o teu espírito”, e lá fora o calunias? Ai de mim! os ritos veneráveis da Igreja transformam-se em figuras, não são reais. Ai de mim! reduzem-se a palavras os símbolos destes acampamentos militares. Donde vem ignorardes até por que se diz: “A paz esteja com todos”? Mas ouvi em seguida as palavras de Cristo: “Quando entrardes numa cidade ou numa aldeia... Ao entrar na casa, saudai-a. E, se for digna, desça a vossa paz sobre ela. Se não for digna, volte a vós a vossa paz” (Mt 10,12-13). Não entendemos estas palavras porque as consideramos apenas figuras e não damos assentimento. Acaso sou eu que dou a paz? Cristo se digna falar por nosso intermédio. Embora em todas as outras ocasiões estejamos desprovidos da graça, não agora, por causa de vós. Com efeito, se a graça de Deus atuou num jumento e num mago por causa de seu plano e para o bem dos israelitas (cf. Nm 22ss), é claro que nem em nós recusará operar, mas nos sustentará por causa de vós. Ninguém, portanto, diga que sou imperfeito, humilde, sem valor, e deste modo me considere. Sou, de fato, tudo isso, mas sempre Deus costuma por causa do povo assistir os que são tais. E a fim de ficardes cientes de que assim é, dignou-se falar a Caim por causa de Abel (cf. Gn 4), ao diabo por causa de Jó (cf. Jó 1,2), ao Faraó por causa de José (cf. Gn 41), a Naducodonosor por causa de Daniel (cf. Dn 2), a Baltasar por causa do mesmo Daniel (cf. Dn 5). Os magos tiveram uma revelação (cf. Mt 2), e Caifás, apesar de assassino de Cristo e indigno, profetizou devido à dignidade sacerdotal (cf. Jo 11,49ss). Diz-se também que por isso Aarão não foi atingido da lepra (cf. Nm 12). Por que razão, dize-me, ambos murmuraram, e somente a irmã sofreu o castigo? Não te admires, visto que também na magistratura profana, se for alguém acusado de inúmeros crimes, não é levado a julgamento antes de ter sido deposto do cargo, a fim de que também este não seja rebaixado; muito mais no múnus espiritual, seja quem for que o detenha, opera a graça de Deus. Do contrário, tudo estaria perdido. Entretanto, uma vez deposto, seja ao morrer, seja durante a vida, sofrerá castigos mais rigorosos (cf. Sb 6,6). Não julgueis que sou eu quem fala; é a graça de Deus que age por intermédio de um indigno, não por causa de nós, mas por vós.

Não é a mim que desprezais, mas o sacerdócio. Se me virdes dele despojado, então desprezai-me; então nem eu tentarei dar prescrições. Enquanto, porém, ocupar esta sede, enquanto presidirmos, temos autoridade e poder, apesar de indignos. Se a cátedra de Moisés era de tal modo respeitável que era ouvida por causa dele, muito mais o trono de Cristo. Nós o recebemos por sucessão, dele parte nossa voz, desde que Cristo confiounos o ministério da reconciliação. Aos embaixadores, fossem o que fossem, por causa da dignidade da embaixada, eram prestadas muitas honras. Nota, portanto: sozinhos, iam para a terra dos bárbaros, entre tantos inimigos; e pelo fato de ter grande força o direito da legação, todos os respeitavam, todos os olhavam respeitosos, todos os deixavam partir em segurança. E nós de igual forma recebemos o ofício de embaixador, e viemos da parte de Deus. Tal é a dignidade do episcopado. Viemos até vós, exercendo a legação, no intuito de terminardes a guerra, sob certas condições. Não vos prometemos doar cidades, nem tantas e tantas medidas de trigo, nem escravos, nem ouro, e sim o reino dos céus, a vida eterna, a familiaridade com Cristo e outros bens inefáveis e inconcebíveis (cf. 1Cor 2,9), enquanto estivermos neste corpo e na vida presente.

“mas agora, pela morte, ele vos reconciliou no seu corpo de carne, para diante dele vos apresentar santos, imaculados e irrepreensíveis.”

Aqui apresenta igualmente o modo da reconciliação: “No seu corpo”, não apenas ferido, flagelado e vendido, mas ainda submetido à mais ignominiosa das mortes. Novamente relembra a cruz e ainda outro benefício. Pois Deus não só reconciliou, mas o que mencionou acima: “Que nos fez capazes” (Cl 1,12), implicitamente aqui ainda assevera: “Mas agora, pela morte,... para diante dele vos apresentar santos, imaculados e irrepreensíveis”. Não apenas libertou dos pecados, mas ainda nos trasladou para o número dos homens agradáveis a Deus. Na verdade, não sofreu tanto só para nos livrar dos males, mas ainda para obtermos os primeiros lugares. Seria como se alguém não apenas livrasse um réu do suplício, mas ainda o colocasse em posto elevado. E nos transferiu não só para a lista dos que em nada pecaram, bem como para a daqueles que praticaram obras sublimes, e o que é ainda mais importante, nos “apresentou santos diante dele”. Ser “irrepreensível”, porém, é maior do que ser “imaculado”, pois chamamos de irrepreensível quem não fez coisa alguma que incorra em repreensão ou culpa.

“contanto que permaneçais alicerçados e firmes na fé e sem vos afastar da esperança do evangelho. “
Aqui, volta-se contra a negligência e não só exorta: “permaneçais”, uma vez que é possível permanecer, mas indeciso e inquieto; e também permanecer e ficar agitado: “contanto que permaneçais alicerçados e firmes na fé e sem vos afastar”. Ah! que grande metáfora emprega! Não só decididos, bem como não apartados. Repara: Nada coloca neste ínterim de pesado ou laborioso, e sim a fé e a esperança, a saber, se permaneceis firmes em crer ser verdadeira a esperança dos bens futuros. Com efeito, aqui é possível; não é lícito deixar-se abalar acerca da virtude, nem um pouco. Não é exigência onerosa.

Tendo dito Paulo o que parcialmente encontramos, e revelado o amor de Deus aos homens e a honra proveniente da grandeza dos dons, afirma com mais intensidade o mistério que ninguém antes de nós conheceu a respeito de Cristo. De idêntica forma procede na Carta aos Efésios, dizendo que nem os Anjos, nem os Principados, nem qualquer Virtude criada, mas apenas o Filho de Deus o conheceu (cf. Ef 3,8-11). Por isso, não declarou apenas: mistério “escondido” (kekrymmenon), mas “abscôndito” (apokekrymmenon). Embora realizado só agora, no entanto é antigo. Deus o queria desde o início, e assim dispôs. A razão disso, porém, não a declarou absolutamente.

O Apóstolo toca com uma espécie de censura na observância dos dias, denominando “elementos do mundo” o sol e a lua, conforme declara também na Carta aos Gálatas: “Como é possível voltardes novamente a estes fracos e miseráveis elementos?” (Gl 4,9). E não diz: “Observância dos dias”, e sim: “Do mundo presente”, a fim de aludir à insignificância deles; pois, se o mundo nada é, muito mais os seus elementos. Depois de ter apontado a quantos benefícios receberam, quantos bens, faz a acusação a fim de torná-la mais forte, e repreender os ouvintes. Igualmente os profetas sempre assim procediam: primeiro manifestavam as boas obras e logo acrescentavam a acusação.

Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem, mas pelo pleno despojamento do corpo de pecados na carne: essa é a circuncisão de Cristo. Vê como aborda a questão. “No pleno despojamento”; só a expressão: “despojamento” não basta. “Do corpo de pecados” alude ao antigo modo de vida. Refere-se de maneira assídua e variada, conforme se expressava mais acima: “Ele nos arrancou do poder das trevas” e quando éramos estranhos, reconciliou-nos para sermos “santos e imaculados” (Cl l,13; cf. 1,21-22). Não mais, diz ele, a circuncisão é pela faca, mas no próprio Cristo. Já não é a mão que opera esta circuncisão, conforme outrora, e sim o Santo Espírito. Não um membro, mas o corte atinge o homem todo.

Deus tomou do pó da terra, e plasmou o homem (Gn 2,7); de resto, não tomou do pó, mas plasmou, dispôs pelo Espírito Santo, à semelhança do próprio Cristo no seio da Virgem. Não disse: No paraíso, e sim: No céu. Pelo fato de lhe estar sujeita a terra, não julgues que está na terra; daqui foi trasladado para o céu; lá estas coisas se realizam no meio dos anjos. Deus levou para o alto a tua alma, e no alto a ajustou; fez com que estivesses junto do trono real. É plasmado e formado na água, e recebe o espírito que dá a vida. Mas, formado o homem, não conduz para junto dele os animais e sim os demônios o príncipe deles e ordena-lhe: “Pisai serpentes e escorpiões” (cf. Lc 10,11). Não diz: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26). O que, então? Dá-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, que não nasceram do sangue, mas de Deus (cf. Jo 1,12.13).

Mas como são grandes os dons que recebemos, assim grande é igualmente a ameaça de suplício. Não é lícito, tendo saído do paraíso, habitar diante do jardim (cf. Gn 3, 24), nem voltar para o lugar donde fomos expulsos. E o que esperar depois? A geena e o verme que não se extingue. Mas não suceda que algum de nós seja submetido a este suplício; entretanto, vivendo na virtude, esforcemo-nos por agir de acordo com a vontade de Deus, de maneira a ser-lhe agradável, a fim de nos livrarmos dos suplícios e gozar dos bens eternos, pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, com o qual ao Pai e ao Espírito Santo glória, império, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.

A vida presente não é a vossa vida; outra é a vossa vida. É urgente que os transfira para lá.

Eis que exorto e ordeno que esmigalhes esses enfeites do rosto e tais vasos para dar aos pobres, e deixar de tanta loucura. Quem quiser dê saltos, quem quiser faça acusações; não tolero mais abusos. Quando eu estiver para ser julgado, perante o tribunal de Cristo, enquanto eu presto contas, ficareis de longe e o vosso favor de nada me servirá. Estas palavras, dirá alguém, estragam tudo; ele se afastará, e transferir-se-á para outra seita, pois é fraco. Usa de um pouco de condescendência. Até onde? Até quando? Uma, e duas e três vezes, e não sempre. Eis que novamente ordeno, e atesto com são Paulo. “Se eu voltar, não usarei de meias medidas” (2Cor 13,2). Quando agirdes bem, conhecereis qual o lucro, qual a utilidade. Sim, exorto e rogo, não hesito em agarrar-vos os joelhos, e suplicar-vos neste sentido. Que moleza! Que luxo! Que injúria! Não é luxo, é injúria. Que insânia! Que loucura! Tantos pobres estão ao redor da igreja; e a Igreja tem tantos filhos, e tão ricos, que a pobre algum podem ajudar. Mas, enquanto um está na penúria, outro se embriaga; um recolhe excrementos em vaso de prata, outro não tem um pedaço de pão. Que loucura! Que imensa crueldade! Não aconteça que cheguemos ao extremo de procedermos contra os desobedientes, e indignados os entregarmos ao castigo, mas de bom grado acolham obedientes todas estas exortações, a fim de vivermos para a glória de Deus, escaparmos do suplicio no além e alcançarmos os bens prometidos aos que o amam, pela graça e amor aos homens, etc.

“Suportando-vos uns aos outros”, isto é, perdoando-vos mutuamente. E vê como nada assinala que se possa chamar de querela. Em seguida acrescenta: “como o Cristo vos perdoou”. Grande exemplo! Sempre age deste modo; toma Cristo como ponto de partida. “Queixa”, diz ele, denotando ser coisa pequena; mas, ao apresentar o exemplo, atesta que, mesmo se podemos fazer graves acusações, devemos perdoar. Tal é o significado da locução: “Como o Cristo vos perdoou”. Não apenas isto, mas também de todo o coração; ainda não basta, porque é preciso amar. Pois, exemplificando com Cristo, engloba tudo. E nós, até sobre injúria pesada, e apesar de não termos ofendido de forma alguma, de sermos grandes e eles pequenos, até mesmo se eles haverão de nos injuriar, e ainda devamos dar a vida por eles, aquele termo: “Como” o exige; nem o amor deve interromper-se na morte, mas, se possível, ir além.

“E sede agradecidos.” É o que principalmente procura sempre, por ser a suma de todos os bens. Demos, portanto, graças por tudo o que acontecer; é a verdadeira “eucaristia”. Efetivamente, agir assim quando tudo corre bem, não é ação grandiosa, porque a própria natureza das coisas nos impele a isso. É admirável quando chegamos à extrema necessidade e damos graças. De fato, pondera a grande sabedoria de darmos graças por causa de acontecimentos que outros maldizem e dificilmente toleram. Em primeiro lugar dás alegria a Deus; em segundo incutes vergonha ao diabo; em terceiro, consideras que o evento nada é e simultaneamente dás graças; e Deus tira a dor enquanto o diabo se afasta. Pois, se suportas de má vontade, este último se apresenta porque se realizou aquilo que ele queria; e Deus, como que atingido pela blasfêmia, te abandona, e intensifica-se o mal. Se, ao invés, deres graças, o diabo que nada obteve se afasta; e Deus, que foi honrado, retribui com honra maior. É impossível que o homem que dá graças por causa dos males, sinta-os. Com efeito, alegra-se a alma por ter agido bem; imediatamente regozija-se a consciência e exulta por seus louvores. Não pode tornar-se sombria a alma alegre. Ali, porém, advém a infelicidade e a consciência também castiga; aqui, coroa e proclama qual arauto. Nada de mais santo do que a língua que na infelicidade dá graças a Deus; na realidade, não difere da língua dos mártires. De modo semelhante uma e outra são coroadas.

Porque o algoz insta com a primeira, querendo coagi-la a negar por blasfêmia; o diabo insta, lacerando-a com ideias torturantes, e desânimo tenebroso. Quem, contudo, suportar as dores e der graças, recebe a coroa do martírio. Por exemplo, o filho adoece, e a mãe dá graças a Deus; obtém uma coroa.

Após persuadi-los de que fossem gratos, indica-lhes igualmente o caminho. Qual? Aquele que anteriormente vos descrevemos. O que dizia? “A palavra de Cristo habite em vós ricamente.” Ou antes, não somente este, mas ainda outro. Pois exortei, na verdade, que devemos relembrar os que sofreram mais, e no espírito revolver aqueles que sustentaram e toleraram padecimentos maiores do que os nossos, e dar graças porque tal não nos sucedeu. Quanto a Paulo, como se exprime? “A palavra de Cristo habite em vós ricamente”, isto é, a doutrina, as verdades da fé, as admoestações que declaram nada ser a vida presente, ou os seus bens. Se o virmos, não retrocederemos diante de dificuldade alguma. “Habite em vós ricamente.” Não apenas simples, mas superabundantemente. Ouvi todos vós seculares, que tendes o governo de mulher e filhos, como Paulo vos ordena especialmente ler as Escrituras, não de maneira superficial, ao acaso, mas diligentemente.

Vê como é sábio: divide seus bens, é esmoler e humano, reconhece que a natureza é comum a todos, sabe que não merece consideração o consumo de dinheiro, e que deve antes tratar bem o próprio corpo do que as moedas. Por esse motivo, todo aquele que despreza a glória é filósofo: pois conhece bem as coisas humanas. A filosofia consiste no conhecimento das coisas divinas e humanas. Por conseguinte, conhece quais as coisas divinas, quais as humanas; destas se abstém, naquelas se exerce. Sabe também em todas as situações dar graças a Deus. Considera que a vida presente nada é; por isso, não se alegra na felicidade, nem na adversidade se entristece. Nem aguardes outra espécie de mestre. Tens as palavras de Deus; ninguém te ensina de maneira igual. Um mestre com frequência oculta muitas coisas por causa da vanglória e da inveja. Escutai, suplico-vos, vós que vos preocupais com a vida presente, e adquiri livros que são medicamentos da alma. Se não quereis outros, adquiri o Novo Testamento, os Atos dos Apóstolos, os Evangelhos, mestres perpétuos. Se sobrevir uma dor, considera tal farmácia, e de lá retira alívio para o mal, quer seja prejuízo, caso de morte, perda dos teus. Ou melhor, não somente olha para lá, mas toma de tudo e ali mantém o pensamento. A ignorância das Escrituras é a causa de todos os males. Vamos desarmados para a guerra e como escaparemos salvos? Seria ótimo salvarmo-nos com estas armas; sem elas não o podemos, absolutamente. Não jogueis tudo para cima de nós; sois ovelhas, mas não irracionais, e sim dotadas de razão.

Paulo também vos dá muitos preceitos. Os alunos não passam todo o tempo aprendendo, porque não recebem passivamente o ensino. Se ficares aprendendo perpetuamente, não aprenderás. Não venhas de tal modo como se houvesses de aprender sempre, pois, do contrário, nunca saberás; e sim como quem há de chegar ao fim do aprendizado para ensinar a outrem.

Assim os ensinamentos (da Escritura) são uma espécie de fonte. Ensina a teu filho cantar aqueles salmos cheios de sabedoria; por exemplo, trate logo da prudência, ou melhor, em primeiro lugar, aconselha-o a evitar as más companhias, como no início do Livro, assim começa igualmente: “Feliz o homem que não vai ao conselho dos ímpios” (Sl 1,1) e ainda: “Não me assento com os impostores” (Sl 25,4), ainda: “Tem por desprezíveis os malvados, mas honra os que temem ao Senhor” (Sl 15,4); mantenha-se na companhia dos bons – também isto e muitas outras coisas encontrarás ali –, a dominar o estômago, a conter as mãos, a não se prender à cupidez ; porque um nada são as riquezas, um nada a glória, e o que se lhe assemelha. Se instruíres o menino desde a tenra idade, aos poucos leva-lo-ás a realidades mais elevadas. Os salmos contêm tudo, e os hinos nada possuem de simplesmente humano. Quando ele aprender os salmos, então será introduzido nos hinos, que são mais sagrados. As potências celestes cantam hinos, não salmodiam. “O louvor não é belo na boca do pecador” (Eclo 15,9), e ainda: “Meus olhos estão nos fiéis da terra, para que habitem comigo”; e ainda: “Em minha casa não habitará o soberbo”, e: “Quem andar na integridade, este me servirá” (Sl 101,6-7.2).

Conhecem os fiéis qual o hino dos seres celestes, que no alto cantam os Querubins. O que cantavam os anjos, aqui embaixo? “Glória a Deus nas alturas” (Lc 2,14). Por isso proferem-se os hinos depois da salmodia, porque um tanto mais perfeitos. Diz o Apóstolo: “Em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais”. Exprime-se dessa forma porque Deus, por sua graça, concedeunos tais coisas; ou cânticos cheios da graça; ou porque admoestam e ensinam pela graça; ou pela graça possuíam tais dons; ou por se tratar de explanação. Pela graça, diz ele, do Espírito. “A Deus entoem vossos corações.” Não somente de boca, mas com atenção. Isso seria cantar a Deus; do contrário seria lançar ao vento, difundir inutilmente a voz. Não para ostentação. Até mesmo na praça podes concentrar-te e cantar a Deus, sem que ninguém ouça. Daí vem que Moisés rezava desse modo, e era ouvido. Foi dito: “Por que clamas por mim?” (Ex 14,15). Embora nada tenha pronunciado, clamou mentalmente com coração contrito; por essa razão apenas Deus o ouviu. Nada impede a um caminhante rezar no coração e mantê-lo ao alto.

Se agirmos dessa maneira, nada será maculado, nada impuro, onde Cristo é invocado. Quer comas, quer bebas, quer te cases, quer partas em viagem, faze tudo em nome de Deus, isto é, invocando seu auxílio. Antes de começares qualquer obra, invoca-o. Queres falar alguma coisa? Primeiro reza. Igualmente nós nas cartas colocamos primeiro o nome do Senhor. Onde estiver o nome do Senhor, tudo será bem-sucedido. Efetivamente, se os nomes dos cônsules tornam válidos os documentos, muito mais o nome de Cristo.

Por que não dá Paulo tais ordens sempre e em todas as cartas e somente aqui e na Carta aos Efésios, a Timóteo e a Tito? Porque é provável que, nessas cidades, houvesse dissensões. Ou talvez em outros pontos agissem bem, nestes, contudo, menos corretamente, e por conseguinte era preciso que ouvissem esse discurso. Ou melhor, o que diz a eles, vale para todos. Pois a presente carta tem grande semelhança com a Carta aos Efésios. Em outras passagens não age dessa maneira, porque, sendo dirigidas a homens já em paz e que deviam aprender doutrinas mais sublimes de que ainda careciam, era desnecessário escrever sobre o assunto. Ou porque, tendo já recebido conforto nas provações, era supérfluo ouvir tais exposições. Suponho que a Igreja já se achava firme e estável, e ele queria explicar estes pontos no final.

“Vós, mulheres, submetei-vos aos maridos como convém no Senhor.” Porque constitui ornamento para vós, não para eles. Não uma submissão servil, nem somente natural, mas por causa de Deus.

“Maridos, amai as vossas mulheres e não as trateis com aspereza.” Vê como sugere os deveres mútuos. Como na outra passagem (cf. Ef 5,33) menciona temor e caridade, assim também aqui pode acontecer que um deles ame e seja, contudo, amargo. O sentido é o seguinte: “ Não deveis brigar”. Não há pior contenda do que a do marido contra a mulher. Pois, quando as lutas são contra pessoas amadas, são intensas; e explica que o dissídio contra um membro do próprio corpo (cf. Ef 5,28-30) origina-se de grande acrimônia. Mas é próprio do homem amar, e da mulher condescender. Se, portanto, cada qual presta o que deve, o todo fica firme e estável. Pelo fato de ser amada, a mulher se torna benévola; doutro lado, se ela é submissa, o marido se faz clemente. Observa, no entanto, que é natural que um ame e a outra obedeça. Com efeito, quando o que ordena ama o súdito, então tudo se mantém estável. Não tanto se exige amor do súdito quanto daquele que comanda; ao súdito compete obediência. Uma vez que cabe a beleza à mulher, e ao homem o desejo, é manifesto que assim acontece por amor. Mas não fiques insolente, porque a mulher é submissa; nem tu, porque o marido te ama, te orgulhes. A amizade do marido não exalte a mulher; nem a submissão da mulher ensoberbeça o marido. Ela te foi sujeita, ó homem, para ser mais amada; e fez com que fosses amada, ó mulher, para facilmente suportares a submissão. Sejas submissa, sem temor; ser submissa a quem te ama não acarreta dificuldade. Não temas tu que amas porque ela é dócil. De outro modo, faltará o vínculo. Tens necessariamente o domínio por natureza, tenhas o vínculo do amor; considera que deves sustentar a parte mais fraca.

“Filhos, obedecei aos vossos pais em tudo, pois isso é agradável ao Senhor.” Novamente refere-se ao “Senhor”, emitindo leis de obediência, e incutindo respeito e submissão. “Pois isso é agradável ao Senhor.” Vê como quer o Apóstolo que sejam nossas ações não somente segundo a natureza, mas para agradarmos a Deus, e obtermos a recompensa.

“Pais, não irriteis aos vossos filhos, para que eles não desanimem”. Apresentou o que sabia ser mais adequado para estimulá-los, e dá-lhes ordens amigavelmente, sem referir-se absolutamente a Deus; sensibiliza os pais, e comove-lhes as vísceras. A expressão: “Não irriteis” significa: “Não os façais mais teimosos; há sempre algo que deveis desculpar”.

“Mas em simplicidade de coração, no temor do Senhor.” De fato, não seria simplicidade, mas hipocrisia ter uma coisa no pensamento e fazer outra. “Em tudo o que fizerdes trabalhai com ânimo, como para o Senhor e não para homens”. Não quer apenas afastá-los da hipocrisia, mas igualmente da preguiça. Transforma-os em livres em vez de escravos, uma vez que não precisam da vigilância dos senhores.

Perseverai na oração, vigilantes, com ação de graças, Considerando que muitas vezes caem na preguiça os que perseveram longamente na oração, acrescenta: “Vigilantes”, isto é, atentos, sem divagar. Conhece, de fato, conhece o diabo que grande bem constitui a oração, e em consequência persegue duramente. Paulo sabe também que muitos dos orantes são indolentes; por essa razão diz: “Perseverai na oração”, como algo de oneroso. “Perseverai na oração, com ação de graças.” Seja esta vossa tarefa, oração com ação de graças, pelos benefícios visíveis e invisíveis, pelas realizações voluntárias e involuntárias, pelo reino, pela geena, pelas tribulações e pelo alívio. Assim costumavam orar os santos, e dar graças pelos benefícios comuns. Conheço um santo homem que assim rezava. Não proferia outras palavras, senão as seguintes: “Damos graças por todos os vossos benefícios, dos primeiros dias até hoje, concedidos a nós, indignos: conhecidos e ignorados, visíveis e ocultos, em obras, em palavras, de bom grado ou de má vontade recebidos, todos concedidos a nós, indignos; pelas tribulações, pelo alívio, pela geena, pelo castigo, pelo Reino dos céus. Suplicamos conserveis santa a nossa alma, pura a consciência. Dai-nos um fim consentâneo a vosso amor aos homens. Tanto nos amastes que destes por nós o vosso Unigênito. Fazei-nos dignos desse amor. Dai-nos sabedoria em vossa palavra, em vosso temor, Cristo, Filho unigênito, infundi-nos vossa força. Vós, que destes vosso Unigênito por nós e enviastes vosso Espírito Santo para remissão de nossos pecados; se faltamos voluntária ou involuntariamente, perdoai e não leveis em conta. Lembrai-vos de todos os que invocam em verdade vosso nome. Lembrai-vos do que nos querem bem, dos que, ao contrário, nos querem mal. Somos homens. Todos nós”. Em seguida, acrescentando a oração dos fiéis, sendo coroa e elo a oração por todos, punha termo à prece. Efetivamente Deus nos concede muitos benefícios contra nossa vontade: muitos, ignorados e maiores. Pois, quando fazemos certos pedidos e ele confere o contrário, é evidente que ele, sem o sabermos, nos beneficia.

Sintamos, caríssimos, emulação por estes vínculos. Todas vós, mulheres, com correntes de ouro, ambicionai as cadeias de Paulo. Um colar ao pescoço não brilha de modo idêntico ao fulgor do enfeite férreo das cadeias na alma de Paulo. Quem anela por estas, odeie aquelas. Queres saber por que aqueles são enfeites? Dize-me. Quem atrai mais a atenção, tu ou Paulo? E por que digo: tu? A própria imperatriz, toda revestida de ouro, não atrairia mais os olhares. Se acontecesse entrarem simultaneamente na igreja Paulo algemado e a imperatriz, talvez todos desviassem os olhos dela e os dirigissem para ele. E com razão. Contemplar um homem acima da natureza humana, que nada possuía da fraqueza humana, mas se assemelhava a um anjo sobre a terra, seria mais admirável do que a visão de uma mulher ornada. Pois é possível encontrar a essa nos espetáculos, nos cortejos, nos banhos, em muitos lugares, por toda parte; quanto a um homem carregado de vínculos que os tem por máximo ornamento, que não cede diante das cadeias, é impossível vê-lo qual espetáculo humano, e sim enquanto visão digna do céu.

Reveste-te de Cristo, e não de ouro; onde está mamon,Cristo não se encontra, onde Cristo está não se acha mamon. Não queres te vestir do rei do universo? Se alguém te concedesse a púrpura e o diadema, não os acolherias melhor do que toda quantidade de ouro? Eu não te dou o ornamento régio, mas ofereço-te o próprio rei para te revestires. Mas como pode alguém se vestir de Cristo? Escuta as palavras de Paulo: “Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo” (Gl 3,27). Ouve a admoestação do Apóstolo: “Não procureis satisfazer os desejos da carne” (Rm 13,14). Revestir-se de Cristo é não satisfazer os desejos da carne. Se te revestires de Cristo, os demônios te temerão; do contrário, se for de ouro, até os homens zombarão de ti; se te revestires de Cristo, também os homens te respeitarão. Queres parecer bela e digna? Basta-te a conformação que te deu o Criador. Por que acrescentas ornamentos de ouro, como se quisesses corrigir a imagem de Deus? Queres parecer formosa? Reveste-te da esmola, veste a benignidade, a modéstia, afasta-te da ostentação. Tudo isto é mais precioso do que o ouro. Igualmente torna mais bela a mulher formosa; também faz formosa aquela que não o é. Quando alguém vê um rosto marcado pela benevolência, profere um juízo caridoso; ninguém pode chamar a mulher ruim de bela, mesmo que seja formosa; pois uma consciência ferida não suporta um juízo reto.

Quando te ornamentas de modo inconveniente, ó mulher, então te fazes mais torpe do que a mulher nua; despiste a modéstia. Eva também estava nua; mas quando se vestiu, então se tornou mais vergonhosa; porque, quando estava nua, estava ornada da glória de Deus; quando, porém, vestiu o manto do pecado, então era imoral. E tu, vestida de ornamentos mundanos, então apareces mais obscena. Pois o excessivo luxo não basta para manifestar a beleza, mas pode acontecer, asseguro, que, embora vestida, seja mais desonesta do que uma despida. Se alguma vez te vestistes com as roupas dos flautistas e dançarinos, não foi indecoroso? No entanto, eram vestes de ouro; por isso mesmo, pelo fato de serem de ouro, é uma torpeza. O excessivo luxo do vestuário convém aos representantes de tragédias, aos atores, aos histriões, aos dançarinos, aos que combatem com as feras. À mulher fiel Deus concede outras vestes, a saber, o próprio unigênito Filho de Deus. “Vós todos que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo” (Gl 3,27). Dize-me, por favor. Se alguém te desse uma veste régia, tu, porém, sobre aquela colocasses a veste vil dum escravo, acaso por te portares de modo inconveniente, não serias até castigado? Revestistes do Senhor do céu e dos anjos a ti mesmo, e ainda te envolves em coisas terrenas? Proferi tais palavras a fim de mostrar que por si é grande mal o excessivo desejo dos ornamentos, mesmo se outra coisa dali não surgisse e fosse possível usá-los sem perigo (de fato induzem ao fausto e à vanglória). Entretanto muitos outros males se originam do apuro em se enfeitar: suspeitas manifestas, gastos inoportunos, blasfêmias, avareza e muitas ocasiões de ambição. Por que, dize-me, te enfeitas? Para agradar ao marido? Então, age assim dentro de casa. Acontece, porém, o contrário. De fato, se queres agradar ao marido, não agrades a outros; se, porém, agradas a outros, não poderás aprazer a teu marido. Por esse motivo, devias tirar todo ornato ao ires ao foro, ou à igreja. Doutra forma, não agradarás ao marido com aquilo que usam as meretrizes, mas antes por aquilo que empregam as mulheres dignas. Em que, dize, por favor, difere a esposa da meretriz? Esta visa a um só fim, agradar pela beleza corporal àquele a quem ama. A esposa, contudo, dirige a casa, está na companhia dos filhos e dos demais. Tens uma filhinha? Cuida de que não fique prejudicada. Pois elas costumam adquirir bons hábitos pela educação e imitam os costumes das mães. Dá exemplo a tua filha de modéstia e temperança; orna-a com esses enfeites e despreza aqueles. Na verdade, estes são ornamentos, aqueles, porém, mais enfeiam do que ornam.

Sejam suficientes estas palavras. Deus, porém, que fez a beleza do mundo, e nos deu o mundo ornado da alma nos aformoseie e revista de sua glória. E resplandecentes todos de boas obras, vivendo para sua glória, tributemos glória ao Pai, e ao Filho e ao Espírito Santo.

“De modo que saibais como convém responder a cada um.” De um modo ao príncipe, de outro ao súdito; de um modo ao rico, de outro ao pobre. Por quê? Porque o espírito dos ricos e dos príncipes é mais fraco, porque mais se orgulha, mais se dispersa; por isso é necessário usar para com eles de maior condescendência. Quanto aos pobres e aos subordinados, são mais firmes e sensatos; para com eles, portanto, é possível empregar-se maior liberdade de linguagem, considerando uma só coisa, a saber, a edificação. Nem pelo fato de um ser pobre e o outro rico, o rico é mais honrado e o outro menos; mas sustenta-se o primeiro por causa de sua fraqueza, e não tanto o segundo. Por exemplo, a não ser que haja um motivo, não chames um pagão de malvado, nem sejas injuriador; mas, se fores interrogado a respeito de uma doutrina, responde que é abominável e ímpia. No entanto, se ninguém perguntar, nem obrigar-te a falar, não deves temerariamente arranjar inimizades. Que necessidade existe de provocar inimizades inúteis? Ainda, se estás catequizando, fala conforme exige o assunto apresentado; do contrário, cala-te. Se o discurso está condimentado com sal, ao encontrares uma alma frouxa, restringirás a frouxidão; se for áspera, suavizarás a dureza. Sê amável, não molesto; nem sejas frouxo, mas emprega austeridade aprazível. Pois, se alguém for excessivamente austero, é mais prejudicial do que proveitoso; se, ao invés, for extremamente atencioso, mais molesta do que ajuda. Por esse motivo, sempre se conserve a medida. Não sejas triste nem de rosto sombrio, pois é desagradável; nem difuso e dissoluto, porque seria desprezível e indigno; mas assumindo ambas as virtudes, foge do vício, como a abelha, recolhendo de um lado a alegria e o regozijo, de outro a austeridade. Pois, se o médico não trata de igual modo os corpos todos, muito mais há de fazer o mestre. Os corpos suportam melhor os medicamentos impróprios do que a alma as palavras inadequadas. Por exemplo, aproxima-se um gentio e torna-se teu amigo? Deste assunto nada conversarás com ele até que cresça a amizade; e quando crescer, devagar! Olha de que modo Paulo discursava em Atenas. Não dizia: “Malvados e abomináveis”! O que, então? “Atenienses, sob todos os aspectos sois, eu o vejo, os mais religiosos dos homens” (At 17,22). De outro lado, não era omisso quando era preciso exprobrar, mas com grande veemência dizia a Elimas: “Ó filho do diabo, cheio de toda falsidade e malícia, inimigo de toda justiça” (At 13,10). Por conseguinte, como seria insipiência censurar aqueles, se não exprobrasse a este, teria sido covarde. Além disso, és conduzido ao magistrado por causa duma questão? Presta as honras devidas.

Se, portanto, relativamente às coisas exteriores é tão grande bem não invejar, e considerar como propriamente seus os bens alheios, muito mais ao se tratar de nossa vitória contra o diabo; então quanto mais nos alegrarmos, ele furioso assopra sobre nós. Embora seja malvado, sabe muito bem que se trata de grande prazer. Queres incomodálo? Alegra-te e regozija-te. Queres contentá-lo? Fica de fisionomia sombria... Pensemos nisso, caríssimos, a saber, que é dupla a coroa dos que não invejam: aplausos da parte dos homens, beneplácito da parte de Deus, e quais os males originários da inveja. E assim conseguiremos eliminar a fera, agradarmos a Deus, e conseguir o mesmo que aqueles que gozam de boa fama. Talvez o consigamos. Mas, se não o alcançarmos, não conseguimos porque não nos convém. Poderemos, no entanto, assim vivendo para a glória de Deus, conseguir os bens prometidos aos que o amam, pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai e o Espírito Santo glória, império, honra, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.

Não nos impacientemos nas aflições por causa de Cristo, mas lembremo-nos também nós das cadeias de Paulo! E sirva-nos de advertência. Exortas, por exemplo, alguns a darem aos pobres por causa de Cristo? Lembra-te dos vínculos de Paulo, e considera-te infeliz (e a eles também) se, enquanto Paulo entregou o corpo às cadeias por causa de Cristo, tu nem ao menos dás alimento. Orgulhas-te por causa das boas obras? Recorda-te dos vínculos de Paulo, e nada disso sentirás, nem te exaltarás, absolutamente. Cobiçaste os bens do próximo? Lembra-te dos vínculos de Paulo, e verás como é absurdo estar ele entre perigos, e tu no meio dos prazeres. Além disso, desejas as delícias? Venha a tua memória o cárcere de Paulo; és discípulo dele, companheiro de milícia. Seria razoável estar teu companheiro de milícia em cadeias, e tu nos prazeres? Estás aflito e julgas-te abandonado? Escuta as palavras de Paulo, e verás que estar atribulado não é sinal de abandono. Queres vestes de seda? Lembra-te dos vínculos de Paulo e elas vos parecerão mais vis do que sórdidos andrajos. Queres vestimentas áureas? Venha a tua memória os vínculos de Paulo e não te parecerão de maior valor do que velhas cordas de junco. Queres penteados nos cabelos, e parecer bela? Pensa no desleixo de Paulo no cárcere e te inflamarás por aquela beleza e considerarás enorme deformidade a tua; gemerás amargamente, anelando por aqueles vínculos. Queres usar pintura, fardo, etc.? Recordate daquelas lágrimas! Durante três anos, dia e noite, não cessou de exortar com lágrimas (cf. At 20,31). Com tais ornamentos embeleza tuas faces. Estas lágrimas as tornam esplêndidas. Não digo que chores pelos outros (gostaria também que isso sucedesse, apesar de ser para ti muito elevado), mas exorto a que o faças por teus pecados. Mandaste prender o escravo, e ficas irritada e encolerizada? Lembra-te dos vínculos de Paulo, e logo a ira cessará. Recorda-te de que somos do número dos presos, não dos que prendem; dos que têm o coração contrito, não dos que o esmagam. Tu te expandes e dás gargalhadas? Lembra-te do pranto dele e hás de gemer; estas lágrimas te tornam muito mais esplêndida. Viste os que se dão aos prazeres e dançam; lembra-te das lágrimas dele. De que fonte brotam tantas torrentes quanto as lágrimas de seus olhos? “Lembrai-vos de minhas lágrimas” (cf. At 20,31), e aqui: 

“Lembrai-vos das minhas cadeias!”.

Nada é mais agradável do que a virtude, nada mais suave que a moderação, nada mais desejável do que a honestidade. Realizem-se as núpcias conforme descrevi e ter-seá prazer. Dai atenção à qualidade das núpcias. Primeiro, procura para a jovem um marido que seja verdadeiramente chefe da família, como a cabeça para o corpo, de sorte que lhe entregues não uma escrava, mas uma filha. Não procures o dinheiro, nem o brilho da estirpe, nem a grandeza da pátria. Tudo isso é supérfluo. E sim, a piedade do coração, a mansidão, a verdadeira prudência, o temor de Deus, se queres que a filha viva feliz. Pois, ao procurares o mais rico, não somente não a ajudarás, mas prejudicarás; transformarás em escrava uma livre. Pois não terá tanto gozo com o ouro quanto malestar devido à escravidão. Não procures isso, mas quem for de igual condição. Se não for possível, antes um mais pobre do que um mais rico, se não queres vender a filha a um senhor, mas entregá-la a um marido. Após examinares exatamente a virtude de um homem, se decidires dá-la a ele, roga a Cristo que esteja presente. Ele não se envergonhará disso, pois, na verdade, é o mistério de sua presença. Ou melhor, pede-lhe que conceda tal pretendente. Não sejas pior que o servo de Abraão, que, enviado para tão grande viagem, soube onde se refugiar e conseguiu obter tudo. Quando estiveres ocupado na procura de um marido, reza, dize a Deus: “Providencia aquele que queres”. Entrega-lhe todo o problema. Ao honrá-lo dessa forma, serás remunerado. Importa, certamente, fazer duas coisas: confiar-lhe a questão, e procurar um que seja como ele quer, a saber, digno e honesto. Estando para realizar as núpcias, não percorras casas, pedindo de empréstimo espelhos e vestes. Não se trata de ostentação, nem conduzes a filha a pompas. Mas alegrando os que estão em casa, chama os vizinhos, amigos e parentes; convida os que conheces como bons e honestos, e adverte a que se contentem com o que encontrarem. Nada de orquestra; é um gasto inútil e inconveniente. Antes de todos convida a Cristo; sabes por meio de quem o convidarás. “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 15,40). Não consideres desagradável convidar pobres por causa de Cristo; desagradável é convidar meretrizes. Pois convidar os pobres é ocasião de obter riquezas, o outro caso é perversão e ruína. Orna a noiva não com enfeites de ouro, e sim com mansidão e pudor e vestes habituais. Em vez de recoberta de ouro puro e vestes dobradas revista o pudor e a modéstia e não deseje os outros enfeites. Não haja tumulto, nem perturbação. Chame-se o noivo, receba a noiva. O almoço e a ceia não sejam cheios de embriaguez, mas de gozo espiritual. Inúmeros bens surgem de tais núpcias, e o que se refere à vida da família estará em segurança. Das núpcias que agora se realizam (se é possível denominá-las núpcias e não pompas), vê quantos males. Terminadas as refeições, imediatamente aparecem os cuidados e os receios de que se tenham estragado objetos recebidos de empréstimo, e intolerável angústia substitui o prazer. Além disso, a angústia e a aflição da procuradora; ou antes, nem a própria esposa está livre delas; pois o que sucede certamente depois recai sobre a esposa. Pois ver tudo estragado é motivo de tristeza, ver a casa deserta é ocasião de pesar. Aqui, acha-se Cristo, ali Satanás; aqui alegria, ali cuidados; aqui prazer, ali dor; ali gastos, aqui nada disso, ali vergonha, aqui modéstia; lá inveja, aqui generosidade; ali embriaguez, aqui sobriedade, salvação, temperança. Ponderando tudo isso, impeçamos que o mal continue a fim de agradarmos a Deus e sermos dignos de conseguir os bens que são prometidos aos que o amam, pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai e o Espírito Santo glória, império, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.


Trechos retirados do livro: Patrística, vol 27. Comentários de São João Crisóstomo/3; pg 293 – 388. 






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