Comentário de São João Crisóstomo à I e II Carta a Timóteo
Introdução
Este é um material de apoio do Projeto de Leitura Bíblica: Lendo a Bíblia, para baixar o calendário de leitura bíblica e os outros textos de apoio dos Doutores da Igreja , online e pdf, sobre cada livro da Bíblia, clique aqui.
Este projeto é um dos ramos de uma árvore de conteúdos planejados especificamente para o seu enriquecimento. Os projetos que compõem esta árvore são: Projeto de Leitura Bíblica com textos de apoio dos Doutores da Igreja (baixar gratuitamente aqui), Plano de Vida Espiritual (baixar gratuitamente aqui), o Clube Aberto de Leitura Conjunta Salus in Caritate, com resenha e materiais de apoio (para ver a lista de livros, materiais e os cupons de desconto 2020 clique aqui) e o Salus in Caritate Podcast (ouça em sua plataforma preferida aqui).
Primeira Carta a Timóteo
Timóteo era um dos discípulos do Apóstolo. Lucas, de acordo com os testemunhos dos irmãos de Listra e de Icônio (At 16,2), atesta que era um jovem admirável. Foi, ao mesmo tempo, discípulo e mestre. Era de tal forma prudente que, ouvindo dizer que Paulo anunciava o evangelho aos incircuncisos e sabendo que por isso se opôs a Pedro, preferiu não anunciar o contrário e também submeter-se à circuncisão. Foi circuncidado (At 16,3) naquela idade, e assim foi-lhe confiado todo o ministério. Certamente bastava para indicar quem ele era, o seu amor a Paulo, o qual em toda parte o atesta, por escrito e oralmente: “Sabeis que prova deu: como um filho ao lado do pai, ele serviu comigo à causa do evangelho” (Fl 2,22); e aos coríntios ainda escreve: “Enviei-vos Timóteo, meu filho amado e fiel no Senhor”; e mais uma vez: “Ninguém o menospreze! Pois trabalha na obra do Senhor, como eu” (1Cor 4,17; 16,11; 16,10). Escreve também aos hebreus, nesses termos: “Sabei que o nosso irmão Timóteo foi libertado” (Hb 13,23). Em toda parte é possível encontrar sinais dessa amizade. E os milagres então realizados demonstram o grande crédito de que gozava.
Se alguém quisesse saber por que se dirigiu somente a Tito e a Timóteo, apesar de
Silas e Lucas serem igualmente virtuosos, responderia o próprio Paulo, ao escrever:
“Somente Lucas está comigo” (2Tm 4,11). Dentre os que lhe faziam companhia achava-se também Clemente, do qual ele declara: “Em companhia de Clemente e dos demais
colaboradores meus” (Fl 4,3). Por que motivo, então, se dirige apenas a Tito e a
Timóteo? Porque já lhes entregara o governo de Igrejas; quanto aos outros, ainda os
levava consigo nas viagens. Nesses trechos trata de alguns tópicos importantes. Timóteo
era tão virtuoso que sua juventude não lhe ocasionava impedimento. Por isso escreve o
Apóstolo: “Que ninguém te despreze por seres jovem”; [e ainda: “Às moças, como a
irmãs” (1Tm 4,12; 5,2)]. Quando há virtude, há superabudância e nada se torna
obstáculo. Ao dissertar a respeito dos bispos e abordar várias questões a eles
relacionadas, jamais alude à idade. Se escreve: “Mantendo os seus filhos na
submissão”; e: “Esposo de uma única mulher” (1Tm 3,4; 32), não quer dizer
precisarem de mulher e filhos, mas tem em vista que se um secular for elevado a este
múnus, saiba governar a casa, os filhos etc. Se ele se mostrar incapaz nestas funções,
será possível confiar-lhe o governo de uma Igreja?
No entanto, por que envia a Carta ao discípulo, ao qual já confiara o múnus de
ensinar? Acaso não importava fosse ele primeiro perfeitamente instruído e só depois enviado? Em verdade, ele não precisava dos conhecimentos de um discípulo, mas dos
que competiam a um mestre. Observa, portanto, que, em toda a Carta, o Apóstolo emite
ensinamentos convenientes aos mestres. E logo no início não declara: Não dês atenção
aos que ensinam de outra maneira; mas, o que exige? “Admoestares a alguns a não
ensinarem outra doutrina” (1Tm 1,3).
É forçoso que o mestre se sujeite a muitos perigos, bem mais do que os discípulos. Com efeito, “ferirei o pastor e as ovelhas
do rebanho se dispersarão” (Zc 13,7; Mt 26,31). Sendo assim, o diabo com maior
violência insufla sobre eles, porque, de fato, ferido o pastor, o rebanho se dispersa. Em
verdade, matar as ovelhas diminui o rebanho, mas eliminar o pastor causa a ruína do
rebanho inteiro. Por conseguinte, uma vez que ele com menos trabalho consegue
resultado melhor, e por meio de uma só alma perde o todo, ataca especialmente os
mestres. Por este motivo, o Apóstolo logo de início estimula, dizendo: Temos um
Salvador que é Deus, e Cristo, nossa esperança. Sofremos muito, mas possuímos firme
esperança; incorremos em perigos, em insídias, mas temos um Salvador, não homem
apenas, mas Deus. O Salvador não é fraco, porque na realidade é Deus, e por maiores
que forem os perigos, não haverão de nos vencer. Nem a esperança confunde, pois é
Cristo.
Por que nas outras cartas nunca precede a misericórdia, mas somente nesta? Vem do
grande afeto. Formula vários votos em favor do filho, com temor e tremor. Preocupa-se
a tal ponto que, embora jamais o tenha feito alhures, escreve acerca da saúde corporal, nesses termos: “Toma um pouco de vinho por causa de teu estômago e de tuas
frequentes fraquezas” (1Tm 5,23). Os mestres precisam de maiores cuidados. “Da parte
de Deus, nosso Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor.” Novamente um conforto. Pois
Deus é Pai e cuida dos filhos seus. Escuta a palavra de Cristo: “Quem dentre vós dará
uma pedra a seu filho, se este lhe pedir pão?” (Mt 7,9).
"...te recomendei permanecer em Éfeso". Ele passara muito tempo naquela cidade, onde havia o
templo de Diana e onde padecera graves tribulações. Após ter se esvaziado o teatro e ele
haver exortado os discípulos que convocara, embarcou; no entanto retornou. É razoável
perguntar se então havia estabelecido ali Timóteo como chefe, pois diz: “Para
admoestares a alguns a não ensinarem uma outra doutrina”. Não os cita nominalmente,
a fim de não perderem o recato, uma vez que eram repreendidos publicamente. Ali havia
dentre os judeus falsos apóstolos... Agiam desta forma ... por vanglória e pela ambição de possuírem discípulos; eram movidos a disputar
com São Paulo por inveja. É o que significa a expressão: “Ensinarem uma outra
doutrina”.
Nada prejudica tanto o gênero humano quanto desprezar a amizade, e não conservála com grande empenho, como, ao invés, nada tanto orienta bem a vida quanto por ela
aspirar com vigor. Cristo o indica, dizendo: “Se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que queiram pedir, isto lhes será concedido”; e ainda: “E pelo
crescimento da iniquidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 18,19; 24,12).
Foi esta a origem de todas as heresias. Por não serem amados, os irmãos felizes eram
invejados; da inveja, porém, originou-se a ambição do domínio; e da ambição do
domínio, as heresias. Por isso, Paulo, após dizer: “Para admoestares a alguns a não
ensinarem uma outra doutrina”, sugere o modo de agir que o possibilita. Qual? A
caridade. Assegura: “A finalidade da Lei é Cristo” (Rm 10,4), isto é, a plenitude, e estão
de acordo; de igual modo, a este preceito une-se a caridade. A finalidade da medicina é a
saúde, e onde existe saúde não se precisa de tratamento; assim, onde há caridade, não
são necessários muitos preceitos. A qual caridade se refere o Apóstolo? À sincera, não
apenas de palavras, mas de afetos, de sentimentos e de comiseração. “De um coração
puro”, oriundo de uma vida reta, e de amizade sincera. Com efeito, uma vida impura
produz divisões. “Pois quem faz o mal odeia a luz” (Jo 3,20). Existe também amizade
entre os malvados, por exemplo, os ladrões amam os ladrões, o homicida aos homicidas,
contudo não têm por origem “uma boa consciência”, mas uma perversa; nem “um
coração puro” e sim um impuro, nem “uma fé sem hipocrisia”, mas uma fé simulada.
A fé, de fato, exibe a verdade, da fé nasce a caridade sincera. De fato, quem acredita em
Deus, jamais desiste desta fé. “Desviando-se alguns desta linha, perderam-se num
palavreado frívolo.” Com razão declara: “Desviando-se”. Em verdade, precisa-se de
arte para retamente visar o alvo e não errar; de igual modo necessita-se da orientação do
Espírito. Com efeito, há muitas coisas que nos desviam do caminho reto e é necessário
olhar para um só escopo. “Pretendendo passar por doutores da Lei.” Notas outra causa,
a ambição de domínio. Por isso dizia Cristo: “Não vos façais chamar Rabbi” (Mt 23,8); e
ainda o Apóstolo: “Nem eles observam a Lei. Mas querem se gloriar na vossa carne” (Gl
6,13).
Quando se propõem às crianças modelos de letras, aquela que não as faz segundo os
modelos, mas de cor, possui maior perícia, e melhor utiliza as letras. Assim, quem
transcende a lei não é orientado por ela. Pois quem não a cumpre por medo, mas por
amor à virtude, melhor a cumpre. Não cumpre a lei de modo semelhante, portanto, quem
tem medo do suplício e aquele que ambiciona honrarias; nem igualmente quem está sob a
lei e aquele que se encontra acima da lei. De fato, viver acima da lei é usá-la “segundo
as regras”. Usa bem a lei e a guarda aquele que realiza mais do que ela preceitua e não
se guia por ela. A lei, quando muito, proíbe os crimes. Não é isso que constitui o justo, e
sim as boas obras. Por conseguinte, quem se abstém do mal como os escravos, não
realiza o escopo da lei, estabelecida para punir a transgressão. Pois, eles a cumprem por
temor do suplício. “Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o bem” (Rm
13,3). Seria como se alguém dissesse: A lei ameaça com o suplício apenas os maus, mas
onde está a utilidade da lei para aquele que pratica obras dignas de coroa? À semelhança
do médico que é útil ao ferido ou ao doente, não, porém, ao de boa saúde.
Somos ungidos com tal unguento quando fomos batizados; então exalamos bom odor.
Em seguida, a conservação do bom odor depende de nossos esforços. Por isso,
antigamente, eram ungidos os sacerdotes, símbolo da virtude, porque o sacerdote deve
emitir o bom odor. Nada é mais fétido do que o pecado. Vê como o profeta pinta sua
natureza: “Minhas chagas estão podres e supuram” (Sl 37,6).
Com efeito, o pecado é mais fétido do que qualquer espécie de podridão.
O que,
pergunto, mais fétido do que a luxúria? Se não o sentes ao cometer o pecado, depois de
cometido, reflete, no que é, e então perceberás o mau cheiro, a imundície, a vergonha, a
abominação.
Tal é o pecado. Antes de cometido, causa certo prazer; depois de perpetrado, cessa o
gozo, fenece, e aparecem a dor e a tristeza. Ao invés, a justiça no início é laboriosa, no
fim ocasiona prazer e repouso. No primeiro caso, o prazer não é prazer, pela expectativa
da vergonha e do castigo; neste, o labor não é labor, pela esperança da retribuição. O que
é, pergunto, a embriaguez? O prazer não dura somente enquanto se bebe? Ou antes, nem
enquanto se bebe. Qual o prazer de cair na insensibilidade, perder a visão das coisas
presentes, e tornar-se pior do que os loucos? Ou ainda, a própria fornicação não é prazer.
Qual o prazer de ficar a alma privada do juízo, devido à paixão? Se constitui prazer, a
sarna também causa prazer. Diria que é verdadeiro prazer a alma não ser tomada por
alguma paixão corporal nem se desviar. Que prazer existe em ranger os dentes, virar os
olhos, sentir cócegas, irritar-se inconvenientemente? Não há prazer, uma vez que nos
esforçamos por disso nos libertar rapidamente, e após nos libertarmos sentimos pesar. Se
é prazer, não te livres, mas conserva-o. Vês que de prazer tem apenas o nome? Ora, os
nossos não são desta espécie, mas são realmente suaves; não são ardorosos, mas deixam
a alma livre, cheia de alegria e suavidade. Tal era o prazer de Paulo, que dizia: “Com isso
eu me regozijo. Mas eu me regozijo... Alegrai-vos sempre no Senhor!” (Fl 4,18; 4,4).
Aqueles prazeres incluem torpeza e condenação, serpeiam ocultamente, repletos de
inúmeras tristezas. Estes, porém, estão isentos de todos esses males. Vamos ao encalço
destes, para também alcançarmos os bens futuros, pela graça e amor aos homens de
nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo glória,
império, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.
Constatamos que a humildade traz muito lucro, mas não a encontramos facilmente. A
humildade só em palavras é frequente, mais que suficiente, enquanto a verdadeira
humildade, nunca. São Paulo, porém, de tal modo a buscava, que sempre excogitava
ocasiões de se humilhar. Naturalmente aqueles que estão cientes de terem realizado
grandes obras devem lutar pela aquisição da humildade; por isso é verossímil que ele teve
de esforçar-se, exaltado pelo influxo na consciência do bem praticado.
Por que, então, os outros judeus não conseguiram misericórdia? Porque não agiram
por ignorância, mas com conhecimento e bem cientes. E para o conheceres com
exatidão, ouve o evangelista: “Muitos chefes creram nele, mas, por causa dos fariseus
não o confessavam, pois amaram mais a glória dos homens do que a de Deus” (Jo
12,42-43). E Cristo diz ainda: “Como podereis crer, vós que recebeis glória uns dos
outros”; e ainda: “Os pais (do cego) assim disseram por medo dos judeus”, para não
serem expulsos da sinagoga. Os próprios judeus ainda diziam: “Vede. Nada conseguimos.
Todo mundo vai atrás dele!” (Jo 5,44; 9,22; 12,19).
Vês que nada se faz por temor de Deus, nem por seu amor, mas a uns por amizade, a
outros por hábito? Se vemos um amigo partir em viagem, choramos, gememos; morto, o
pranteamos, embora saibamos que não estará separado de nós perpetuamente, mas na
ressurreição haveremos de recuperá-lo. Mas, quando Cristo diariamente se afasta de nós,
ou antes o repelimos cada dia, não lastimamos, nem pensamos cometer falta grave, em
ação injusta, por afligi-lo, irritá-lo, fazer o que lhe desagrada. Mas ainda não é tão
detestável se não o tratarmos qual amigo. Mostrarei que o temos por inimigo. De que
modo? “O desejo da carne é inimigo de Deus” (Rm 8,7), diz Paulo. Sempre o trazemos
conosco, mas afastamos o Cristo que vem ao nosso encontro, e bate à nossa porta (é o
que acontece pelas más obras). Tratamos diariamente de ofendê-lo pela ambição, pelas
rapinas. Elogia-se um homem que se destaca na eloquência e é útil à Igreja? Invejamo-lo,
porque realiza as obras de Deus; aparentemente é a ele que invejamos, mas a inveja
atinge a Cristo. Não, replicas, mas queremos ser úteis por nós mesmos e não por
intermédio de outros. Não agimos por causa de Cristo, mas por nossa causa. Com efeito,
se fosse por causa de Cristo, seria indiferente realizar a obra por outros ou por nós. Dizeme. Se um médico tem um filho em perigo de cegueira e não possui a faculdade de evitá-la, mas encontra outro médico que pode curá-lo, acaso o rejeita? Absolutamente, não.
Glorifiquemos, portanto, a Deus; exaltemo-lo corporal e espiritualmente. E de que
forma é glorificado pelo corpo e pelo espírito? Aqui denomina espírito a alma, em
oposição ao corpo. Como é glorificado pelo corpo? Como pela alma? Pelo corpo glorifica
quem não comete fornicação, não se embriaga, não é glutão, não cuida de ornamentarse, só se preocupa com o suficiente para a saúde, não comete adultério. A mulher que
não se perfuma com unguentos, que não usa pintura, que se contenta com o que Deus
plasmou e nada sobrepõe. Por que, pergunto, acrescentas algo ao que Deus criou tão
perfeito? Não te basta aquela formação? Tentas decorar a obra, como se fosses artífice
mais hábil. Certamente não é isso; mas te adornas e injurias o Criador, para atraíres
inúmeros amantes. E o que fazer? Perguntas. Não o quero, mas sou obrigada a agir
dessa forma por causa do marido. Não costuma ter amantes aquela que não o quer. Deus
te fez formosa para ser admirado também por esse motivo, não a fim de ser ofendido.
Não lhe retribuas os dons desse modo, mas pela continência e honestidade. Deus te fez
formosa para aumentar os prêmios da honestidade. Não é igual o procedimento da
mulher que é cobiçada e guarda a castidade e a daquela que não é assediada e faz o mesmo. Ouves o que a Escritura diz de José? “Era belo de porte e tinha um rosto
bonito” (Gn 39,6). O que nos adianta saber que José foi belo? Para serem mais
admiradas sua beleza e honestidade. Deus te fez formosa, por que te fazes disforme? As
que usam pintura assemelham-se a alguém que unja de lodo uma estátua de ouro.
Colocas terra, um tanto vermelha e em parte branca. Mas as mulheres feias, respondes,
o fazem com razão. Por quê? Dize-me. Para cobrir a fealdade? É inútil. Onde, pergunto,
o que é natural é superado pelo produto dos esforços e da arte? Por que a fealdade
entristece, se não é malvada? Escuta a palavra de determinado sábio: “Não detestes uma
pessoa por sua aparência, e não elogies um homem por sua beleza” (Eclo 11,2). Antes
admira a Deus, ótimo artífice, e não o que não é obra sua. Qual, pergunto, é o lucro da
beleza? Nenhum, mas ocasiona muitas disputas, maiores incômodos, perigos, suspeitas.
Ninguém suspeitará da mulher que não se destaca pela beleza; mas a formosa, se não
tiver grande honestidade, logo terá má fama. Seu marido viverá com suspeitas. Quantos
aborrecimentos! Não terá tanto prazer pela beleza, quanto tristeza pelo ciúme. O prazer
fenece pelo costume, enquanto a mulher terá a nota de lascívia, dissolução, luxúria, e a
mente se torna vã e assaz arrogante. A beleza acarreta tudo isso. Não se encontram esses
obstáculos naquela que não é formosa. Os cães não atacam e ela apascenta-se tranquila
qual ovelha, sem que o lobo perturbe ou assalte, enquanto o pastor fica sentado perto.
Não há vantagem em ser formosa, ou em não ser; mas muito dano provém da que
fornicar embora não seja formosa, e da que for malvada. Dize-me. O que importa nos
olhos? Que sejam suaves, bem traçados, arredondados e azuis, ou que sejam agudos e
penetrantes? Diriam que importam mais estes últimos, e evidencia-se por este exemplo:
Qual o préstimo da lâmpada? Que resplandeça clara e ilumine toda a casa? Ou que seja
bem traçada e arredondada? Diria que é a primeira que se deseja; a segunda é inútil. Por
isso sempre dizemos à criada disto encarregada: Preparaste mal a lâmpada; a função da
lâmpada é iluminar. Por conseguinte, não interessa que o olho seja tal e tal, contanto que
preencha, como é justo, a sua função. E diz-se que é fraco se for obtuso, sem as devidas
condições. Dizemos que tem olhos doentes quem não enxerga com os olhos abertos.
Afirmamos ser péssimo quem não preenche suas funções; tais são os olhos péssimos.
Dize-me. Que importa relativamente ao nariz? Que seja reto, bem proporcionado e
simétrico, ou apto ao olfato, logo capte o odor e envie a sensação ao cérebro? É evidente
a qualquer um. Vamos, pois. Examinemos a questão por meio de um exemplo. Dize-me.
Quando diremos que foi bem-feito um instrumento fabricado para captar? Quando pode
captar e reter bem, ou quando for belamente arranjado? Sem dúvida o primeiro. Quanto
aos dentes, quais dizemos que são ótimos? Os que trituram e cortam o alimento, ou os
que estão bem alinhados? Certamente os primeiros. Se examinarmos todo o corpo, e
cada membro segundo este raciocínio, descobriremos que todo membro sadio é ótimo,
contanto que possa cumprir exatamente sua função. Assim dizemos que um vaso é bom,
e bons os animais e as plantas, não pela forma, nem pela cor, mas pelo serviço que
prestam. Assim dizemos que o criado é bom quando nos é útil para o serviço, não
quando é formoso e suave. Vês o que é ser bela? Uma vez que usufruímos em comum
das coisas maiores e admiráveis, em nada somos inferiores.
É grande e admirável a dignidade da doutrina e do sacerdócio, que verdadeiramente é
necessário o sufrágio de Deus para se escolher pessoa capaz. Assim acontecia
antigamente e também agora acontece, se elegermos sem paixões humanas, sem
considerações mundanas, nem por amizade ou ódio. Embora não sejamos tão
participantes da graça do Espírito, basta o bom propósito para invocar a instituição do
próprio Deus. De fato, os apóstolos não eram participantes do Espírito, quando
escolheram Matias, mas assumindo o problema pela oração, incluíram-no no número dos
apóstolos; não levavam em conta uma amizade humana. Assim devemos nós também
fazer agora. Mas, por extrema covardia, rejeitamos até os fatos bem manifestos; se
negligenciamos os manifestos, Deus nos revelará os obscuros? Se não fostes fiéis no
pouco, foi dito, quem vos entregará o que é grande e verdadeiro?
Atualmente sucede muita coisa semelhante. Visto que os sacerdotes não conhecem
todos os pecadores, nem os que indignamente participam dos mistérios, Deus
frequentemente faz com que sejam entregues a Satanás. É por isso que advêm doenças,
insídias, lutos, calamidades, ou coisas semelhantes. Paulo igualmente o declara, nesses
termos: “Eis por que há entre vós tantos débeis e enfermos e muitos morreram” (1Cor
11,27). E de que modo, perguntas, nos aproximaremos (dos mistérios) uma vez por ano?
É péssimo não medires a dignidade do acesso pela pureza da alma, e sim por intervalo de
tempo, considerando provir da piedade não te aproximares mais frequentemente. Ignoras
que macula o acesso indigno, até mesmo que seja uma só vez; aceder dignamente,
porém, com maior frequência, causa salvação. Aceder com frequência não é audácia, e
sim o acesso indigno, até mesmo se for uma vez por ano. Nós, contudo, somos
malvados e míseros, perpetrando inúmeros pecados durante o ano, sem o cuidado de
apagá-los, julgando bastar que não o ousemos sempre e não ultrajemos o corpo de
Cristo. Não pensamos que os que crucificaram a Cristo, só uma vez o fizeram. Acaso o
crime é menor por ter sido uma vez apenas? Judas igualmente traiu uma só vez. E então?
Ficou livre do suplício? Por que medimos esta questão pelo tempo? A pureza de
consciência seja para nós ocasião de nos aproximarmos.
O sacerdote é pai comum do mundo inteiro. Efetivamente, deve cuidar de todos, à
semelhança de Deus, ao qual serve, enquanto sacerdote. Por isso diz o Apóstolo: “Eu
recomendo, pois, antes de tudo, que se façam pedidos, orações”. Daí originam-se dois
bens: de um lado, dissipa-se a aversão que temos aos estranhos. Ninguém poderá odiar
aquele em favor do qual emite preces. De outro lado, estes se tornam melhores, por
causa das orações em seu favor e desistem das atitudes ferozes. Nada contribui tanto
para a difusão da doutrina quanto amar e ser amado. Pondera como é grandioso ouvir
menção de homens pérfidos, e de uns que flagelavam, expulsavam, matavam, enquanto
as vítimas de tais tormentos oravam intensamente a Deus em prol dos que tais crimes
cometiam.
Viste que desejava fosse o cristão superior a tudo isto? As criancinhas no colo do pai
batem-lhe na face, mas com isso não diminui o afeto paterno.
Não vês a quantidade de blasfêmias diárias contra Deus? Quanta injúria lhe
infligem infiéis e fiéis, por palavras e obras? E então? Por este motivo ele extingue o sol?
Interrompe o curso da lua? Rasga o céu? Faz tremer a terra? Seca o mar? Exaure a fonte
das águas? Contém os ventos? Absolutamente, não. Ao contrário, faz com que o sol
desponte, caia a chuva, germinem os frutos e os alimentos anuais para os blasfemos, os
insensatos, os abomináveis, os perseguidores; não um dia só, dois ou três, mas por toda a
vida.
Imita-o também tu; imita-o à medida das forças humanas. Não podes fazer com que
desponte o sol? Abstém-te das maldições. Não fazes a chuva cair? Não injuries. Não
podes alimentar? Não sejas violento. Quanto às dádivas, bastam estes dizeres! Deus
exibe sua benevolência aos inimigos através das obras; tu, ao menos manifesta-a por
palavras, reza pelo inimigo. Assim serás semelhante a teu Pai que está nos céus.
Inúmeras vezes dissertamos a este respeito e não cessamos de dissertar; algo seja
observado. Nós não nos entregamos ao torpor, não nos cansamos, nem nos enfastiamos
de dar explicações; vós, ao menos, não vos mostreis fatigados de ouvir. Fica aborrecido
quem não cumpre o que foi dito; quem segue, quer ouvir de boa vontade e com
frequência, porque não é atacado, e sim elogiado. Com efeito, exaspera-se apenas quem
não põe em prática o que foi falado. Daí vem que o orador se torna oneroso.
Se o Apóstolo quer pôr termo às guerras, às lutas e aos tumultos das nações, e exorta
o sacerdote a dirigir preces pelos reis e príncipes neste sentido, muito mais desta forma
procedam os particulares. Três espécies de guerras são muito graves: Uma é a guerra em
geral, em que nossos soldados são atacados pelos bárbaros; a segunda espécie consiste
em nos atracarmos mutuamente mesmo em tempo de paz; a terceira, a guerra que
declara cada qual a si próprio. É a pior de todas. A travada com os bárbaros não nos
prejudica tanto. O que, pergunto, eles te causarão? Massacram, matam, mas não
arruínam a alma. Nem a segunda espécie de guerra, se o quisermos, poderá nos causar
dano. Embora os outros nos ataquem, podemos ser pacíficos. Escuta o profeta: “Em
troca de minha amizade me acusam, e eu fico suplicando”; e ainda: “Com os que odeiam
a paz, eu sou pela paz”; e novamente: “Quando lhes falo, combatem-me sem motivo” (Sl
109,4; l20,7; 109,3). Da terceira espécie não podemos fugir sem incorrer em perigo. Se o
corpo discorda da alma, excita graves concupiscências, fornece armas aos prazeres
corporais, à ira, à inveja. Se esta guerra não terminar, não conseguiremos os bens
prometidos. Quem não reprime esse tumulto necessariamente cairá e receberá ferimentos
que geram a morte na geena. Diariamente, portanto, precisamos de muito cuidado e
solicitude para que esta guerra não se declare em nós; ou não continue se declarada, mas
seja reprimida e mitigada. Qual o proveito de todo o orbe gozar de profunda paz,
enquanto lutas contra ti mesmo? Importa possuir a paz interior. Se dela gozarmos, nada
do exterior poderá nos prejudicar. A paz de todos em comum contribui bastante para ela.
Por isso diz o Apóstolo: “A fim de que levemos uma vida calma e serena”. Quem se
perturba, enquanto reina a tranquilidade, é sumamente infeliz. Viste que o Apóstolo
menciona a paz que classifico de terceira? Por isso, tendo dito: “A fim de que levemos
uma vida calma e serena”, não se interrompe, mas acrescenta: “Com toda piedade e
dignidade”. Quem não se firma nessa paz não pode viver “com toda piedade e
dignidade”.
“A fim de que levemos uma vida calma e serena” apenas da vida do comum
dos homens, acrescentou: “Com toda piedade e dignidade”. De fato, é possível que
levem uma vida calma e serena os gentios e também os impudicos, os pródigos e os que
se revolvem nos prazeres; entre eles talvez encontrarás os que levem tal vida. No
entanto, para saberes que não é isto, acrescentou: “com toda piedade e dignidade”.
Aquela vida contem insídias, lutas, e a alma cotidianamente é ferida pelas perturbações
dos pensamentos. Evidencia-se pelo suplemento, porém, que indica esta vida; é claro,
porque não disse simplesmente: Com piedade, mas aditou as palavras: “Com toda”.
Com esses termos parece que não só requer uma vida formulada na doutrina, mas
também a que se firma no modo de praticá-la; pois em ambas se requer piedade. Qual a
vantagem de ser piedoso segundo a fé, e na realidade ser ímpio? Escuta aquele santo em
outra passagem, para que se entenda que é possível ser ímpio nas ações: “Afirmam
conhecer a Deus, mas o negam com os seus atos” (Tt 1,16); e ainda: “Renegou a fé e é
pior do que um incrédulo” (1Tm 5,8); de novo: “Alguém que traga o nome de irmão e,
não obstante, seja impudico ou avarento ou idólatra” não honra a Deus (cf. 1Cor 5,11) e
ainda: “O que odeia seu irmão” (1Jo 2,9) ignora a Deus. Viste quantas são as formas de
impiedade? Por isso diz: “Com toda piedade e dignidade”. O fornicador não só é
desonesto, mas também impudico. Igualmente o cobiçoso é dito desonesto e
intemperante. A cupidez não é menos grave do que a concupiscência corporal. Quem não
contém a cobiça é intemperante; quem não contém a concupiscência é intemperante. Por
conseguinte, chamaria de intemperante também o irascível; e denominaria intemperante,
desonesto e impudico o invejoso, o ambicioso de dinheiro, o doloso e todo pecado. “Eis
o que é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador.” O que significa: “Eis o que é
bom”? Rezar por todos. Eis o que é agradável a Deus, o que ele quer, pois “quer que
todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”.
Imita a Deus. Se “quer que todos os homens sejam salvos”, é justo rezar por todos.
Se “quer que todos os homens sejam salvos”, tu também deves desejá-lo. Se o desejas,
reza, pois rezar é próprio dos que o querem.
Sobre Orações Públicas
Diz Cristo: “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de
fazer oração pondo-se em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos
homens. Em verdade vos digo: Já receberam a sua recompensa. Mas tu, quando orares,
entra no teu quarto e, fechando a porta, ora ao teu Pai ocultamente; e o teu Pai, que vê o
que está oculto, te recompensará” (Mt 6,5-6). Por que, então, diz Paulo: “Quero,
portanto, que os homens orem em todo lugar, erguendo mãos santas, sem ira e sem
animosidade”? Não são preceitos opostos? De forma alguma; ou melhor, concordam
inteiramente. De que maneira? Primeiro, explique-se o que significa: “Entra no teu
quarto”, e a razão da ordem de orar “em todo lugar”, não na igreja, e não ser lícito orar
em outra parte da casa, senão no quarto. Qual o sentido da locução? Cristo, ao ensinar
que se deve fugir da vanglória, não diz simplesmente: Não em público, e sim: Reza ocultamente. Ao dizer: “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mt 6,3)
não está se referindo apenas às mãos, mas ensina principalmente que se fuja da
vanglória. Assim sugere igualmente nosso trecho.
Não determinou, portanto, onde rezar, mas somente preceituou que se escape da
vanglória. Paulo, contudo, exprime-se de forma diversa sobre a oração dos judeus. Vê o
que diz: “Orem em todo lugar, erguendo mãos santas”, o que não era lícito aos judeus.
Não podiam aproximar-se de Deus, imolar e prestar culto em todo lugar, mas
congregados de várias partes do mundo num só local, faziam as purificações no templo.
O Apóstolo inclui advertência oposta e liberando desta obrigação, afirma: Entre nós não
acontece como entre os judeus. Ordena que se façam orações por todos (uma vez que
Cristo morreu por todos, e por todos o apregoo), portanto, em toda parte é bom orar.
Doravante nenhum preceito existe a respeito do lugar, e sim relativo ao modo de rezar.
Rezar em toda parte, ordena ele, em qualquer lugar levantar mãos santas. Tal a
exigência. O que quer dizer: “Santas”? Puras. O que significa: Puras? Não lavadas, mas
isentas de avareza, morticínios, rapinas, golpes. “Sem ira e sem animosidades.” O que é
isto? Reza alguém com irritação? Significa: Sem recordação das injúrias. Seja puro o
ânimo do orante, livre de paixão. Não te aproximes de Deus, trazendo inimizades.
Ninguém venha com aversão e animosidade. Qual o sentido da expressão: “Sem
animosidade”? Ouçamos. Não duvidemos de que seremos ouvidos. “E tudo o que
pedirdes com fé, em oração, o recebereis” (Mt 21,22); e ainda: “E quando estiverdes
orando, se tiverdes alguma coisa contra alguém, perdoai-lhe” (Mc 11,23). Eis em que
consiste orar “Sem ira e sem animosidade”. E de que maneira, perguntas, posso ter
confiança de conseguir o que suplico? Não peças o oposto daquilo que ele está disposto a
dar, nada de indigno do Rei, nada de mundano, mas tudo espiritual, aproximando-te sem
ira, “erguendo mãos puras e santas”. Santas ao distribuírem esmolas. Se te aproximares
deste modo, alcançarás aquilo que pedires. Pois, diz o evangelho: “Ora, se vós que sois
maus sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai, que está nos
céus” (Mt 7,11). Dá aqui o nome de “animosidade” à dúvida.
De modo semelhante, quero que as mulheres se aproximem de Deus “erguendo mãos
santas, sem ira e sem animosidade”, não atendam às concupiscências, não roubem, não
sejam avaras. O que importa não furtarem elas próprias, se roubarem por intermédio do
marido? Paulo exige algo mais das mulheres. O quê? “Que tenham roupas decentes, se
enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou
vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a
mulheres que se professam piedosas.” De que roupas ele fala? Da túnica que cobre e
orna tudo decentemente e não da indiscreta. A primeira é verdadeiro ornato, esta não. O
que dizes? Vens suplicar a Deus e usas ornamentos de ouro e tranças? Vieste participar
de um coro? Acaso de uma festa de casamento, de cortejos? Nestas ocasiões utilizam-se
objetos áureos, tranças, magníficas vestimentas. Aqui não é necessário. Vieste rezar,
suplicar perdão de teus pecados e ofensas, pedir ao Senhor que se torne propício; por
que te ornamentas? Não é traje de um suplicante. Como poderás gemer? Chorar? Como
orar intensamente enfeitada com tal vestimenta? Se chorares, tuas lágrimas serão ridículas. Não se deve chorar carregado de ouro. Seria encenação e hipocrisia. Não seria
teatral derramar lágrimas enquanto a mente concebe tanta magnificência, tanta ambição?
Renuncia a esta hipocrisia. De Deus não se zomba. É próprio dos palhaços e dançarinos
que passam o dia no teatro. À mulher honesta nada disto convém. “Que se enfeitem com
pudor e modéstia.”
Não imites as meretrizes. Pelo aspecto elas enredam os amantes. Muitas mulheres,
por causa dos ornamentos, frequentemente se tornaram suspeitas, nada lucraram.
Prejudicaram a muitos com esta aparência. Se a impudica se apresentar igual a uma
mulher casta, nada lucra, porque um dia tudo tornará público quem julga o que está
oculto. Também a mulher casta nada lucrará com a castidade, se pelo ornato das vestes
procurar parecer impura. Causará grande dano para muitos. O que me importam,
perguntas, as suspeitas alheias? Tu lhes proporcionas uma oportunidade, por causa da
veste, do aspecto, dos movimentos. Por isso Paulo falou com insistência a respeito do
traje, do pudor. Rejeita o que constitui apenas indícios de riqueza: ouro, pérolas,
vestimentas suntuosas; quanto mais o produto de uma arte ociosa, como a pintura, o
sombreado dos olhos, o andar elegante, a voz suave, o aspecto flexível e impuro, a
apurada forma dos mantos e da túnica, o cinto artificioso, os calçados caprichosamente
confeccionados. Ele o deu a entender, nesses termos: “Que se enfeitem com modéstia”,
e ao enunciar: “Com pudor”. As atitudes acima não revelam pudor nem modéstia.
Tolerai-me, eu vos peço. Se a repreensão consta de palavras claras, não é no intuito de
ferir, de entristecer, mas para apartar do rebanho o que lhe é estranho. O apóstolo o
proíbe às casadas, às que se entregam aos prazeres, às ricas e ainda mais às que
abraçaram a virgindade. E qual a virgem, replicas, que se cobre de ouro? Qual a que usa
tranças? Uma veste simples pode ser mais refinada do que outra espécie de traje. É
possível que uma veste simples orne mais que a carregada de ouro. Quando a veste for
de tal modo cerúlea e com muito cuidado ajustada pelo cinto ao peito quanto a dos
dançarinos no teatro, de tal forma que nem seja folgada, nem apertada, mas justa, e
drapeada junto do esterno, não será mais apta a seduzir do que muitas vestes de seda? E
se as sandálias pretas brilharem assaz, forem ponteagudas, à imitação do belo nas
pinturas, de sorte que não atinjam muito o calcanhar? E se não pintares os olhos, mas os
lavares com diligência e cuidado, colocares na fronte um véu muito mais alvo que o
rosto, sobrepuseres uma mantilha, para que a brancura por meio da cor negra se
destaque de forma mais agradável? O que dizer das inúmeras rotações dos olhos? Do
cinto, que ora se oculta, ora aparece, cingindo o peitoral? Pois também a este muitas
vezes se descobre, mostrando a beleza do cinto, e joga-se a mantilha ao redor da cabeça.
As mãos, à semelhança do que usam os atores, tão perfeitamente se cobrem de luvas que
estas parecem inatas. O que dizer do andar, e de belos gestos, que mais do que todo ouro
podem atrair os espectadores? Temamos, caríssimos, ouvir a palavra do profeta dos
hebreus às mulheres, entregues às vaidades exteriores: “Em lugar de cinto, uma corda,
em lugar do cabelo encrespado, a calvície” (Is 3,24). Mais atraentes do que os ornatos de
ouro são estes, e muitos outros excogitados a fim de serem contemplados e cativarem os
espectadores. Não é pecado leve, ou antes, muito grave, que provoca a ira de Deus e arruína o labor da virgindade.
Não nos
referimos a todas; ou antes, a todas: às culpadas para se arrependerem; às inocentes,
para tentarem corrigir as demais. Mas acautelai-vos! A emenda atinja as obras. Não
tencionamos provocar tristeza, e sim corrigir, gloriar-nos por vossa causa. Oxalá todos pratiquemos o que a Deus agrada, e vivamos a fim de glorificá-lo e alcançarmos os bens
prometidos, pela graça e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o
Pai, na unidade do Espírito Santo glória, império, honra, agora e sempre e nos séculos
dos séculos. Amém.
Educação
Ouvi, pais e mães! Não faltará a recompensa devida à educação dos filhos. Ele o
assevera na sequência: “Se tiver em seu favor o testemunho de suas boas obras” (1Tm
5,10), se educou os filhos. Entre outras, refere-se a esta exigência. Não é sem
importância consagrar ao próprio Deus os filhos que Ele deu. Com efeito, terão grande
recompensa se lançarem bons fundamentos e boa base, bem como terão castigo se forem
negligentes. Efetivamente, Eli pereceu por causa dos filhos. Devia repreendê-los.
Admoestou, mas não à medida do necessário; como não queria aborrecê-los, causou-lhes
a ruína a eles e a si próprio. Ouvi, pais! Instruí vossos filhos na disciplina e avisos do
Senhor, com suma diligência.
A juventude é dura e difícil, e precisa de muitos instrutores, mestres, pedagogos,
acompanhantes, nutritícios. Mal poderás contê-la apesar de tantos cuidados. A juventude
é semelhante a um cavalo indômito e a uma fera selvagem. Se, portanto, colocarmos
ótimos limites desde o princípio, desde a tenra idade, não precisaremos depois de muito
labor, mas o hábito lhes servirá posteriormente de lei. Não deixemos que empreendam
algo que seja agradável e prejudicial ao mesmo tempo, nem os acariciemos como a
crianças. Conservemo-los principalmente na castidade, pois o vício oposto é o que mais
arruína a juventude. Para tal fim empreguemos muito labor, máxima atenção.
Novamente sobre o sacerdócio e episcopado
Vivamos de modo que o nome de Deus não seja blasfemado. Nem glória humana,
nem má fama; em ambas mantenhamos a correta medida.
“No seio da qual brilhais como astros no mundo” (Fl 2,13). Ele nos deixou para sermos como astros, sermos constituídos mestres dos outros, sermos fermento, viver
como anjos no meio dos homens, como homens entre crianças, como espirituais entre
carnais, para os lucrarmos, sermos sementes, darmos muito fruto. Não há necessidade de
sermão se nossa vida brilhar; são desnecessárias palavras se praticarmos boas obras. Não
haveria pagãos se fôssemos verdadeiros cristãos, se observássemos os preceitos de
Cristo, suportássemos injúrias, rapinas, abençoássemos quando amaldiçoados, se
pagássemos o mal com o bem; ninguém seria tão feroz que não acorresse à verdadeira
religião, se todos se portassem desta forma. Para vossa informação, Paulo era um só e
atraiu a tantos. Se todos fôssemos assim, quantos mundos não atrairíamos? Eis que os
cristãos são mais numerosos do que os pagãos. Nos ofícios, é possível uma só pessoa
ensinar a cem crianças; em nosso caso, muitos são os doutores, e bem mais os
discípulos, contudo ninguém adere. Com efeito, os discípulos observam se existe virtude
nos mestres. Verificando que são idênticos os desejos, que tendemos a igual meta, a
saber, o domínio e a honra, de que maneira haverão de admirar o cristianismo? Veem
que a vida de muitos é repreensível, e a alma se apega à terra. Admiramos igualmente o
dinheiro, ou antes, muito mais; temos com eles horror da morte, medo da pobreza, pavor
das doenças, ambição da glória e do poder; atormentamo-nos com o amor do dinheiro,
captamos as oportunidades. Donde induzi-los a crer? Pelos milagres? Mas já não
acontecem. Pela vida? Mas está estragada. Pela caridade? Mas nem vestígio se encontra.
Por essa razão prestaremos contas não só de nossos pecados, mas ainda do dano
causado ao próximo. Enfim, arrependamo-nos, sejamos vigilantes, manifestemos na terra
cidadania celeste, digamos: “Mas a nossa cidade está nos céus” (Fl 3,20), e aqui
mostremo-nos combatentes. Mas, houve entre nós, diz-se, grandes homens. Como posso
acreditar? – dirá o pagão. Não vos vejo agindo como eles. Se importa recenseá-los, nós
também, dizem eles, temos grandes filósofos, de vida admirável. Ora, apresenta-me
outro Paulo, outro João; certamente não é possível. Não se rirá de nós o gentio ao nos
expressarmos desta forma? Não persevera em sua ignorância, vendo que nosso
raciocínio se baseia em palavras, não em obras? Agora cada um de vós se prontifica a
morrer ou matar por causa de uma moeda. Por uma gleba de terra compareces a
inúmeros tribunais; pela morte do filho revolves tudo. Omito atos lastimáveis: augúrios,
vaticínios, consultas aos astros, horóscopos, emblemas, amuletos, oráculos,
encantamentos, artes mágicas. Em verdade, é grave e pode provocar a ira de Deus
ousarmos cometer tais pecados depois que ele enviou seu Filho. O que fazer? Nada, a
não ser gemer; dificilmente uma minoria resta preservada. Os que se perdem alegram-se
ao ouvir que não são os únicos a serem atingidos, e sim a maioria. Mas, que alegria é
esta? De fato, por causa desta alegria são punidos.
Os mesmos cuidados às mulheres com a dignidade de diaconisas [São João Crisóstomo, fala de dignidade e não de ordenação (não parece se tratar - somente- da mulher do diácono, de fato, antes remete a alguém com o carisma de servir que ganha respeito - dignidade- com o tempo, munida de uma mente bem instruída na doutrina), em seus comentários, parece ser algo atribuído pelo papel dessa mulher na comunidade com o passar do tempo, à fidelidade no serviço e isso faz com que as pessoas a respeitem pois são sóbrias e fiéis].
Em tudo revela-te modelo de boas obras, isto é, sê um exemplo pela vida, um tipo,
uma lei viva, uma norma, um exemplar de vida bem vivida. Seja o mestre: “Um modelo
na palavra” para falar facilmente; “Na conduta, na caridade, na fé, na pureza” íntegra,
na prudência. “Esperando a minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação, à
instrução.” Ordena a Timóteo aplicar-se à leitura. Ouçamos todos, decididos a não
negligenciarmos a meditação das divinas Escrituras. Eis ainda: “Esperando a minha
chegada” disse. Vê como o consola; é possível tenha ele se queixado de orfandade.
“Esperando a minha chegada, aplica-te à leitura” das divinas Escrituras, “à
exortação” recíproca, “ à instrução” de todos. “Não descuides do dom da graça que
há em ti, que te foi conferido mediante profecia.” Aqui dá à doutrina o nome de
profecia.
E depois de
dizer isso, adicionou o mais oportuno, que congrega principalmente a Igreja, a saber, as
ordenações. “A ninguém imponhas apressadamente as mãos, não participes dos
pecados de outrem.” O que significa: “Apressadamente”? Não depois da primeira, nem
da segunda ou terceira prova, mas após teres frequentemente observado e examinado
com exatidão, porque a questão não é isenta de perigo. Com efeito, terás também tu que
lhe conferiste a dignidade, castigo de seus pecados, tanto passados quanto futuros. Por
teres de modo inoportuno perdoado os primeiros, serás culpado também dos futuros, de
sorte que respondas por eles, visto que lhe conferiste a dignidade; e dos passados, porque
não lhe deste tempo de chorá-los e arrepender-se.
Partícipe das boas obras, também participas dos pecados. “A ti mesmo, converva-te
puro.” Refere-se à castidade. “Não continues a beber somente água; toma um pouco de
vinho por causa de teu estômago e de tuas frequentes fraquezas.” Se, porém, exorta a
um homem tão dado a jejuns que durante tanto tempo bebera só água a ponto de se
enfraquecer, e frequentemente se sentira mal, que seja casto, e ele aceita o aviso, muito mais nós, ao recebermos alguma advertência, não devemos levar a mal. Por que o
Apóstolo não lhe fortificou o estômago? Não por impossibilidade, mas por planejar algo
de grande. Aquele cujo manto ressuscitava mortos, é claro que teria tal poder. Por que,
então, não o fez? A fim de não nos escandalizarmos agora pela doença de pessoas
importantes e virtuosas. Seria de proveito a Timóteo. Quando o próprio Paulo foi
entregue a um anjo de Satanás, a fim de não se encher de soberba (cf. 2Cor 12,11),
muito mais Timóteo. Poderiam os milagres levá-lo à arrogância. Permitiu que recebesse o
remédio das normas, para ser humilde. Os demais não se escandalizassem e entendessem
que homens de natureza igual à nossa realizavam obras preclaras. Além disso, parece-me
que esteve sujeito à doença ainda por outro motivo. Paulo o indica, relembrando as
frequentes fraquezas do estômago e outras, sem no entanto permitir que ele se fartasse
de vinho, mas apenas quanto favorecesse à saúde e não ao prazer.
Estando a dissertar sobre as ordenações, disse:
“Não participes dos pecados de outrem”. E se eu os ignorar? – pergunta. “Existem
homens cujos pecados são evidentes, antes mesmo do juízo, ao passo que os de outros
só o são após.” Alguns são evidentes porque precedem; outros não, mas vêm em
seguida.
O mestre precisa não apenas de autoridade, mas também de grande suavidade, não só
de suavidade, mas também de autoridade.
Sê amigo de todos, manso, amado por todos, a
ninguém ofendas em vão e inutilmente, honra o pai, honra a mãe, goza de boa fama, não
seja homem, mas anjo. Nada profiras de torpe, nada de falso; nem penses nisto. Auxilia
o indigente, não roubes nos negócios, não sejas injurioso, nem ousado; e ninguém ouve.
Acaso não é justo infligir a geena? Não é merecido o fogo e o verme que nunca morre?
Como nos jogaremos num precipício? Até quando andaremos sobre espinhos? Até
quando nos fixaremos com cravos e agradeceremos? Somos submissos a cruéis tiranos,
rejeitamos o Senhor benigno, que nada diz de molesto, nada de bárbaro, nada de duro,
de inútil, mas tudo útil, conferindo-nos muito lucro e emolumentos. Levantemo-nos
enfim, convertamo-nos, arrependamo-nos, amemos a Deus, como devemos, para sermos
dignos dos bens prometidos àqueles que o amam, pela graça e amor aos homens de
nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo, glória,
império, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.
Segunda Carta a Timóteo
Por que escreveu Paulo a Segunda Carta a Timóteo? Havia dito: “Espero encontrar-te
dentro em breve” (1Tm 3,14), mas não lhe foi permitido. Consola-o por carta, quando
ele estava triste talvez por ter falhado o encontro, e já assumira o governo. Mesmo os
grandes homens, ao assumirem o leme e o governo de uma Igreja passam por novas
provações, de toda parte submersos nas ondas dos problemas, principalmente quando se
acham no início da pregação, em terreno ainda inculto, cheio de inimigos, e oposição.
Não só, mas ainda havia heresias da parte dos mestres judeus, conforme se subentende
da primeira Carta. Não apenas o consola por carta, mas o chama para junto de si, nesses
termos: “Procura vir me encontrar o mais depressa possível”. E: “Traze-me, quando
vieres, os livros, especialmente os pergaminhos” (2Tm 4,9.13). A meu ver, escreveu
esta Carta próximo do fim, pois disse: “Já fui oferecido em libação”. “Na primeira vez
em que apresentei a minha defesa ninguém me assistiu” (2Tm 4,6.16). Após, consola-o
por meio de suas provações: “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, por vontade de Deus,
segundo a promessa da vida que está em Cristo Jesus”. Logo desde o início o anima.
Não relembres os perigos presentes. Eles nos granjeiam a vida eterna, onde não existem
e a qual afugenta a dor, a tristeza e os gemidos. Cristo não nos nomeou apóstolos
somente em vista de enfrentarmos perigos, mas também de morrermos, e padecermos.
Tendo em mira que a menção de seus males não ocasionava consolo, mas acrescia a dor,
começa pelo primeiro: “Segundo a promessa da vida que está em Cristo Jesus”. Se é
promessa, não procures a realização aqui na terra: “Ver o que se espera, não é esperar”
(Rm 8,24). “A Timóteo, meu filho amado.” Não apenas: “Filho”, mas: “Filho amado”.
Existem filhos não amados, mas não és um destes; nem te denomino filho apenas, mas
filho amado. Chama os gálatas de filhos, mas a respeito deles se condói: “Meus filhos,
por quem eu sofro de novo as dores do parto” (Gl 4,19). Presta o máximo testemunho
sobre a virtude de Timóteo, denominando-o: “Amado”. De que modo? Se o amor não
provém da natureza, vem da virtude. Nossos filhos são amados não somente pela
virtude, mas também por dever natural. Os filhos amados, segundo a fé, são queridos
por causa da virtude. E como ainda? Paulo especialmente nada fazia por inclinação
natural. Além disso, ao dizer: “Filho amado”, indica que não foi por ira, desprezo ou reprovação que deixou de ir ter com ele.
Quando o mestre naufraga e se salva, o discípulo adquire confiança de viajar por mar;
não imaginará que as tempestades provêm de imperícia, mas da natureza das coisas,
proporcionando-lhe não pequeno conforto. Na guerra igualmente, ao tribuno estimula ver
o general ferido recuperar as forças. Assim também constitui consolo para os fiéis ver o
Apóstolo, em meio a grandes padecimentos, não desfalecer. Se assim não fosse, Paulo
não teria narrado o que sofreu. Na realidade, Timóteo ouviu dizer que aquele que tivera
tanto poder e submetera todo o orbe estava preso com cadeias e em aflições, e suportava
sem irritação o abandono dos seus; se ele próprio houvesse sofrido de igual forma, não
consideraria efeito da fraqueza humana, nem de ser discípulo e inferior a Paulo, visto
que o mestre tolerava tais males, mas que tudo acontecera segundo a natureza das
coisas. Paulo agia assim e narrava suas provações para animá-lo e reconfortá-lo. Uma
vez que procedia por isso, tendo narrado tribulações e provas, acrescenta: “Tu, pois,
meu filho, fortifica-te na graça que está em Cristo Jesus”. O que dizes? Incutindo-nos
temor, dizes que estás preso, em aflições, abandonado por todos; e como se dissesses
que nada sofreste, e que ninguém te abandonou, retomas: “Tu, pois, meu filho, fortifica-te”? Certamente, porque recebeste mais força do que o próprio Paulo. Se eu, Paulo,
sofro deste modo, muito mais tu deves suportar; se padece o mestre, muito mais o
discípulo. E com grande afeto dá avisos, ao dizer: “Filho”; e não só, mas: “Meu filho”.
Se és filho, imita o pai; se és filho, fortifica-te com o que eu disse; ou antes, não só pela
narração, mas pela graça de Deus: “Fortifica-te na graça que está em Cristo Jesus”,
isto é, pela graça de Cristo. Quer dizer: Sê corajoso, conheces a fileira em batalha. De
fato, em outra passagem, ao dizer: “O nosso combate não é contra o sangue nem contra
a carne” (Ef 6,12), não quer assustar, mas incitar. Por isso, diz ele, sê vigilante, alerta,
tem contigo a graça do Senhor para lutar e combater; com muito zelo e constância faze a
tua parte.
Trechos do livro: Patrística, Vol 27, tomo 3
0 comments
Olá, Paz e Bem! Que bom tê-lo por aqui! Agradeço por deixar sua partilha.