Comentário a Carta aos Hebreus por São João Crisóstomo
Introdução
O QUE É UM DOUTOR DA IGREJA?
EM SUMA
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Os Hebreus
Comentário a Carta aos Hebreus por São João Crisóstomo
São Paulo escreve aos romanos: “Apóstolo dos gentios, procuro honrar o meu ministério, na esperança de provocar a emulação dos da minha raça” (Rm 11,13-14), e ainda em outra passagem: “Pois aquele que estava operando em Pedro para o apostolado em prol dos circuncisos operou também em mim em favor dos gentios” (Gl 2,8). Se, portanto, era apóstolo dos gentios (pois Deus lhe diz nos Atos: “Vai ao longe, aos gentios é que eu quero te enviar” – At 22,21), o que tinha ele a ver com os hebreus? Ou – lhes enviou uma carta? Aliás, era odiado por eles, conforme se evidencia por muitas passagens. Escuta ainda o que Tiago lhe diz: “Vês, irmão, como abraçaram a fé milhares de judeus...? Ora, ouviram dizer de ti que ensinas a apostatarem” da Lei (At 21,20-21). E foram-lhe feitas frequentes interrogações sobre este assunto.
Poderia perguntar alguém por que, sendo ele perito na Lei (instruído aos pés de Gamaliel e muito zeloso), e por isso idôneo para refutar, não fora enviado por Deus aos judeus? Porque justamente por isso o combatiam. Com tal previsão e certo de que não o aceitariam, disse Deus: “Vai aos gentios, porque eles não acolherão o teu testemunho a meu respeito” (cf. At 22,18). Então ele respondeu: “Mas, Senhor, eles sabem que de sinagoga em sinagoga eu mandava encerrar na prisão e vergastar os que creem em ti, e ao ser derramado o sangue de Estêvão, tua testemunha, estava presente como cúmplice daqueles que o matavam, e guardava as vestes deles” (At 22,19-20). Constituía sinal e prova de que não haveriam de acreditar nele. Acontece o seguinte: Se uma pessoa, contada entre os últimos, sem usufruir de estima, apartar-se de sua gente, será muito incômoda àqueles dos quais desertou. Mas, se quem o fizer for um homem ilustre, de zelo ardoroso e que partilhava com eles o modo de pensar, ser-lhes-á molesto e excessivamente triste o fato de rejeitar ele a doutrina, passar para outro partido e além disso, incrementar a incredulidade. Por que isso? Porque Pedro e os seus companheiros haviam convivido com Cristo, e visto seus prodígios e milagres; a Paulo, porém, nada disso sucedera, mas, sendo partidário dos judeus, de repente passou para o nosso lado, prestando-nos grande apoio. Os apóstolos pareciam dar testemunho da graça e diria alguém que atestavam por amor ao Mestre. Pedro era testemunha da ressurreição, e Paulo, no entanto, somente ouvira a sua voz. Por este motivo, vês que eles se tornaram inimigos, revoltados, planejando eliminá-lo.
Em verdade, “onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20). Neste proêmio também o bem-aventurado Paulo o sugeriu, escrevendo aos hebreus. Atormentados e aflitos por muitos males, e por esta base julgando os fatos, podiam pensar que eram inferiores aos demais. Ele assegura que, por este motivo, haviam conseguido graça maior e superabundante, estimulando os ouvintes desde o começo do discurso. Diante disso enuncia: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho”.
Uma vez que realizou a purificação de nossos pecados, permaneçamos puros, sem contrairmos mácula. Conservemos impolutos e puros o decoro e a beleza que ele nos concedeu, sem mancha ou ruga ou algo de semelhante. São manchas e rugas mesmo os pecados leves, como a detração, a injúria, a mentira. Ou melhor, nem estes são leves, mas muito grandes a ponto de também privarem do reino dos céus. De que modo? Quem chama seu irmão de louco será condenado ao fogo da geena (cf. Mt 5,22). Se é assim para quem chamar de louco, por parecer mais leve e jogo infantil, quem o chama de malvado, malfeitor, invejoso e o ataca com inúmeros outros ultrajes, a que castigo não estará sujeito? O que há de mais horrível? Mas suportai, suplico-vos, o que digo. Se o que se faz a um dos mais pequeninos é a ele que se faz, e quem deixa de fazer a um dos mais pequeninos, é a ele que deixa de fazer (cf. Mt 25,40.45), não será o mesmo relativamente aos elogios e opróbrios? Quem injuria seu irmão, ofende a Deus, e quem o honra, honra a Deus.
Ensinemos, portanto, a nossa língua a proferir palavras boas: “Preserva tua língua do mal” (Sl 33,14). Deus não no-la deu para nos acusarmos, ultrajarmos, caluniarmo-nos mutuamente, e sim para louvarmos a Deus, proferir palavras agradáveis aos ouvintes, que sirvam de edificação e de proveito. Maldizes a alguém? O que lucras? Não causaste dano também a ti? Adquires a reputação de maldizente. Nenhum mal, nenhum se detém naquele que o suporta, sem abrange aquele que o comete. Por exemplo, o invejoso parece armar ciladas a outrem, mas ele é o primeiro a colher o fruto da injustiça, enfraquecido, corrompido, e odiado por todos. O cobiçoso priva o próximo de riquezas, mas perde a amizade dos demais; ou antes, faz com que todos o maldigam. A boa fama é muito melhor do que as riquezas. A boa fama não se elimina facilmente, as riquezas se perdem mais facilmente. Ou melhor, a falta de riquezas não prejudica àquele que não as possui; não ter boa fama torna o homem vergonhoso e ridículo, e de todos adversário e inimigo. O colérico primeiro castiga-se a si próprio atormentando-se, e por fim atinge aquele contra o qual se irrita. Assim também o maldizente primeiro causa a si mesmo vergonha, e depois àquele de quem detrai. E talvez nem o possa fazer, e vai-se com fama de malvado e desprezível, enquanto o outro se torna mais estimado. Quando alguém ouve uma detração, e em vez de se vingar, elogia e admira o detrator, não exalta o outro, mas o elogio reverte para si. Pois, conforme disse acima, as detrações tocam primeiro os que as proferem; assim igualmente os que conferem bens ao próximo são os primeiros a se deleitarem. De fato, os que praticam o bem ou o mal, certamente são os primeiros a deles fruírem. A água salobra e a potável igualmente enchem os vasos dos que a bebem e não diminuem a fonte donde emanam; assim também o vício e a virtude deleitam ou perdem aquele que os pratica. Assim acontece, de fato, na vida presente.
Relativamente à futura, quem consegue narrar os bens ou os males? Ninguém. Com efeito, os bens excedem não só as palavras, mas também todo entendimento; quanto aos males, recebem as denominações que costumamos lhes atribuir. De fato, diz-se que no além há fogo, trevas, vínculos, verme que não morre. E não só os que nomeamos, mas outros mais graves. E para entenderes, em primeiro lugar pondera logo o seguinte. Se há fogo, como existem trevas? Percebes que aquele fogo é mais intenso? Não produz luz. É fogo, e queima sempre? Vês que é mais intenso do que o nosso? Não se apaga, e, portanto, se diz que é inextinguível. Reflitamos, portanto, na gravidade do mal que consiste em queimar-se perpetuamente, estar nas trevas, emitir inúmeros gritos, ranger os dentes, e não ser atendido. Se, lançados num cárcere, pessoas criadas em liberdade consideram mais duro que qualquer espécie de morte apenas o fato do mau odor, de jazer nas trevas e de estar preso entre homicidas, calcula o que representa ser queimado com os homicidas deste mundo, sem ver nem serem vistos, mas no meio da multidão imaginar que se acha sozinho. Com efeito, as trevas e a carência de luz não permitem discernir nem os mais próximos, mas cada qual sentir-se-á isolado neste padecimento. Se, porém, por si nossas almas se angustiam e se perturbam com as trevas, o que será quando além das trevas, as dores e incêndios forem tantos? Por isso, suplico-vos, revolvamos estes fatos continuamente e suportemos o aborrecimento que nos causam as palavras, a fim de não sofrermos realmente os suplícios. Sem dúvida, tudo isto acontecerá, e ninguém socorrerá os que na terra cometeram injustiças; nem pai, nem mãe, nem irmão, mesmo se gozam de muita confiança e alcançam grandes coisas junto de Deus: “Mas o irmão não pode pagar o seu resgate, nem o homem o seu preço” (Sl 49,8). Deus retribui a cada qual segundo suas obras, e de acordo com elas salva ou castiga.“Fazei amigos com o dinheiro da iniquidade” (Lc 16,9). Obedeçamos, portanto. É mandamento do Senhor. Distribuamos o supérfluo aos pobres. Demos esmolas, quanto pudermos. Eis o que significa fazer amigos com o dinheiro da iniquidade. Gastemos o dinheiro com os pobres a fim de apagarmos, extinguirmos aquele fogo, e no além obtermos confiança. Não são eles que nos receberão ali, e sim as nossas obras. O suplemento dá a entender que não são simplesmente nossos amigos que podem nos salvar. Por este motivo não disse: Fazei amigos que vos recebam em seus eternos tabernáculos, mas acrescentou uma restrição, dizendo: “Com o dinheiro da iniquidade”. Mostra que convém fazer amigos com o dinheiro, explicando, no entanto, que a amizade só nos defende se tivermos boas obras, se distribuirmos com justiça as riquezas injustamente acumuladas. Não convém apenas aos ricos o que dissemos a respeito da esmola, mas também aos pobres. Se alguém se alimenta por meio da mendicidade, também a este se dirige a palavra. Por mais que seja, ninguém é tão pobre que não tenha dois óbolos. Como aquela viúva (cf. Lc 21), é possível mesmo aos que dão o pouco do mínimo que possuem superar os que dão muito porque muito possuem. Não são os dons que fornecem a medida, mas julga-se a importância da esmola de acordo com a possibilidade, a decisão dos doadores. Por conseguinte, sempre é necessária a decisão e sempre o amor a Deus. Se procedermos desta forma, e dermos pouco porque temos pouco, Deus não desviará a sua face, mas receberá a dádiva como se fosse grande e admirável. Atende à boa vontade, não às dádivas; e se vir que é grande, dá seu sufrágio e julgamento favorável e nos tornará participantes dos bens eternos. Seja-nos dado a todos nós alcançá-lo pela graça e amor aos homens etc.
Por isso disse: “Pelos dons do Espírito Santo, distribuídos segundo a sua vontade”. Ele quer sugerir aqui, a meu ver, outra coisa: É possível que não houvesse ali muitos dotados de carismas; faltavam porque se fizeram negligentes. Visando consolá-los e não permitir que desanimassem, atribui tudo ao plano de Deus. Ele sabe, diz o Apóstolo, a quem é proveitoso conferi-los, e assim distribui a graça. O mesmo declara na Carta aos Coríntios: “Deus dispôs cada um dos mesmbros no corpo, segundo a sua vontade” (1Cor 12,18); e ainda: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos” conforme lhe apraz (1 Cor 12,7). Mostra que o carisma depende da vontade do Pai. Às vezes, porém, muitos não recebem carismas por causa da vida impura e indolente. Por vezes também os que levam vida pura, não receberam. Por quê? Para não se ensoberbecerem, não se orgulharem, não se tornarem mais preguiçosos, não se exaltarem demais. Pois, se mesmo na falta de um carisma basta a consciência de uma vida pura para exaltar, muito mais, quando também ele existe. Por isso os carismas eram doados mais aos humildes e simples, e principalmente aos simples, porque, conforme foi dito: “Com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). Por este motivo mais exorta; ataca se forem mais indolentes. O humilde, que não enche a fantasia de pensamentos orgulhosos, torna-se mais zeloso, ao receber um carisma, julgando que o recebeu sem o merecer. Quem pensa que fez algum bem, considera que o carisma lhe é devido, e se incha de orgulho. Por isso Deus o distribui conforme a utilidade. Ver-se-á que isto acontece também na Igreja. De fato, um tem o dom de ensinar, outro nem abre a boca. Por essa razão, ninguém fique pesaroso: “Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos” (1Cor 12,7).
Sei que ficareis estupefatos e admirados por ouvir que podeis possuir um dom maior do que o de ressuscitar mortos, dar a vista a cegos, e fazer os milagres que se faziam no tempo dos apóstolos. E talvez vos pareça incrível. De que carisma se trata? Da caridade. Mas acreditai-me. A palavra não é minha e sim de Cristo, que fala através de Paulo. O que diz ele? “Aspirai aos dons mais altos? Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (1Cor 12,31). O que significa: “Que ultrapassa?” É o seguinte: Os coríntios muito se vangloriavam por causa dos carismas, por falarem em línguas, dom mínimo, e exaltavam-se diante dos demais. Ele diz, portanto: Quereis absolutamente possuir alguns carismas? Eu vos mostro o caminho dos carismas, não só excelente, mas que ultrapassa a todos. Em seguida, diz: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse a caridade, nada seria. Ainda que eu tivesse fé, a ponto de transportar montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria” (1Cor 13,1-2). Vistes o carisma? Aspirai a este carisma. É superior a ressuscitar mortos, muito melhor do que todos os outros. E para te certificares de que assim é, ouve o que Cristo diz aos discípulos: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). Logo, demonstrando a que se refere, não menciona milagres. O que diz? “Se tiverdes amor uns pelos outros”. E ainda roga ao Pai: “Todos sejam um, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21). Ele dizia aos discípulos: “Dou-vos um mandamento novo: Que vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34).
(Observação do santo aos que ouvem a homilia)
Gostaríamos de saber claramente se alguns escutam com adequado zelo nossos dizeres, a fim de não lançarmos a semente à beira da estrada; desta forma transmitiremos os ensinamentos mais bem dispostos. Falaremos, contudo, mesmo que ninguém ouça, pelo temor do Salvador. Testemunha, diz ele, perante este povo, e se não ouvir, não terás culpa. Convicto de vosso zelo, porém, falarei não só por temor, mas com prazer. Agora, portanto, mesmo se ninguém ouvir, contanto que cumpra meu dever sem perigo, mesmo sem prazer assumo o trabalho. Pois, de que serve não ser acusado, se ninguém é auxiliado? Alguns retirem proveito e não alcançaremos tanta vantagem com a isenção do castigo quanto com vosso proveito. E como obter conhecimento disto? Observando que alguns de vós não estão atentos, interrogá-los-ei à parte; e se descobrir que retiveram algo, não digo tudo, do discurso – pois não será fácil –, mas ao menos um pouco, é evidente que não duvidarei acerca do restante. Convinha que, sem prevenir, de improviso vos inculcássemos. De resto, ser-me-á agradável, se ao menos desta maneira conseguir; ou melhor, também posso atacar os incautos. De fato, predisse que iria interrogar, mas ainda não declarei quando. Talvez hoje, talvez amanhã, talvez depois de vinte ou trinta dias, talvez depois de poucos dias, talvez após vários dias.
Desta forma igualmente Deus deixou-nos incerto o dia da morte. Não nos manifestou se virá hoje, amanhã, após um ano inteiro, ou vários anos, a fim de que em dúvida diante da expectativa nos mantenhamos em contínua virtude. Disse, em verdade, que havemos de partir, mas não a ocasião. Igualmente eu disse que perguntaria, mas não acrescentei a data, com a intenção de que estivésseis sempre prevenidos. Não retruque alguém: Ouvi há quatro, cinco ou mesmo mais semanas, e não posso guardar tudo. Com efeito, quero que o ouvinte retenha de tal modo que não haja esquecimento, a memória não falhe, não rejeite os dizeres. Quero que os guardeis, não para repetirdes, mas a fim de retirardes lucro. Esforço-me por obter tal finalidade. Tendo dissertado por cautela sobre os pontos necessários, iniciemos os subsequentes.
(Continua o comentário)
Deus, portanto, em primeiro lugar honrou o Filho, que conduziu por meio dos sofrimentos. Em verdade, é muito mais assumir a carne e sofrer o que sofreu do que ter criado o mundo e tirado do nada. É fruto da benignidade, muito maior do que o ato de criar. Demonstrando-o, ele declara: “A fim de mostrar nos tempos vindouros a extraordinária riqueza da sua graça, com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus” (Ef 2,7.6). “Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, levasse à perfeição, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles.” Importava que aquele que de todas as coisas cuida, e produziu-as para que existissem, entregar o Filho pela salvação dos demais, um só por muitos. Todavia não o disse, mas: “Levasse à perfeição, pelo sofrimento”. Expõe que aquele que sofre por um outro, não somente oferece proveito ao próximo, mas também se torna mais ilustre e perfeito. Declara-o aos fiéis, animando-os. De fato, Cristo foi glorificado ao sofrer. Quando, porém, digo: Foi glorificado, não penses que ele assumiu a glória; aquela glória da natureza sempre a teve, não assumiu coisa alguma.
Não vos entristeçais, dizendo: Por que sofremos isto e aquilo? Assim a vitória se faz mais brilhante; não seria brilhante a não ser que a morte abolisse a morte. É admirável porque ela venceu quem a fizera potente, revelando quantas faculdades e habilidades possui. Não atraiçoemos o dom que nos foi concedido. Não recebemos um espírito para recair no temor, mas um espírito de virtude, caridade e modéstia. Estejamos, portanto, de pé com vigor, zombando da morte.
“Volta ao repouso, ó minha alma, pois o Senhor foi bondoso contigo”, e choras? Não é encenação e hipocrisia? Se de fato acreditas no que proferes, é inútil chorar. Se, porém, julgas que se trata de jogo, hipocrisia e fábulas, por que salmodias? Por que acolhes os recém-vindos? Por que não afastas os que salmodiam? Mas isso, replicas, é próprio dos loucos. Aquilo, porém, é muito mais. Por enquanto, admoesto; no decorrer do tempo tratarei deste assunto com maior vigor. Receio muito que deste modo alguma doença grave ataque a Igreja. E depois, corrigirei o luto; por enquanto denuncio, e conjuro ricos e pobres, mulheres e homens.
A todos vós suceda que sem luto possais partir desta vida, e segundo uma disposição justa, os pais que envelheceram sejam enterrados pelos filhos, as mães pelas filhas, netos e bisnetos em boa e avançada velhice, e jamais haja morte prematura. Assim suceda, e isso rogo. Exorto aos presidentes e a vós todos a orardes a Deus uns pelos outros, e seja comum este voto. Se, porém, não acontecer e sobrevier uma morte dolorosa (dolorosa, digo, não por sua natureza; por si não é amarga, e em nada difere do sono; mas o digo em consideração de vossa afeição): se, portanto, acontecer, e alguns encomendarem carpideiras, acreditai-me. Não falo de modo diferente do que penso. Irrite-se quem quiser. Por muito tempo o excluiremos da igreja, qual idólatra (cf. Cl 3,5). Pois, se Paulo chama o avaro de idólatra, muito mais aquele que emprega em relação a um fiel o que é próprio dos idólatras. Por que motivo, pergunto, convidas presbíteros e cantores? Não é para teu consolo e não em honra do defunto? Por que o ofendes e atraiçoas? Por que representas como num teatro? Temos meditado sobre a ressurreição e instruído aqueles que ainda não foram atingidos por aquela honra, de sorte que, se algo disto suceder, suportem-no com fortaleza.
Por conseguinte, não nos perturbemos. Ninguém se abale vendo os maus prosperarem. A terra não é o lugar da remuneração do vício, nem da virtude. Se acontece remuneração do vício ou da virtude, não é devido aos méritos, mas somente à decisão do juiz, de sorte que aqueles que acreditam menos na ressurreição, desta forma aprendam. Se, portanto, notarmos que um malvado é rico, não desanimemos; e se um bom sofre, não nos perturbemos, porque as coroas e os suplícios são conferidos no além. Aliás, é impossível que um malvado seja inteiramente mau, visto que possui algum bem; nem o bom é completamente bom, mas comete alguns pecados. Quando, portanto, o malvado prospera, fica sabendo que o mal recairá sobre sua cabeça; se dentre eles na terra recebem alguma remuneração, no além é inteiro o castigo. Por esse motivo, recebe na terra. E o outro é em extremo feliz porque é punido na terra, a fim de que, apagados todos os seus pecados, parta desta vida comprovado, purificado, isento de culpa.
Supliquemos, portanto, a Deus, não cairmos em tentação; mas, no caso de sobrevir, suportemo-la com fortaleza. É peculiar aos homens prudentes não se precipitarem nos perigos; é próprio dos fortes e dos filósofos continuarem firmes na tentação. Por conseguinte, não nos precipitemos; seria audácia. Nem cedamos, induzidos pelos acontecimentos; seria timidez. No entanto, não recusemos, se o anúncio da palavra o reclamar. Não acorramos simplesmente, sem motivo, nem utilidade, nem necessidade em prol da piedade. Seria ostentação, inútil ambição de honras. Se lesar a piedade, até mesmo forçados a sofrer mil mortes, nada recusemos. Não provoques tentação, se aspiras à piedade. Por que enfrentar perigos inúteis, que não trazem lucro algum?
Assim me exprimo, no intuito de observardes as leis de Cristo, que preceitua rezardes a fim de não cairdes em tentação, tomardes a cruz e segui-lo. Estas coisas não são opostas, mas em perfeita harmonia. Tu, soldado forte, preparado, permanece armado, sóbrio, vigilante, sempre na expectativa de um inimigo. Não declares guerra, o que não compete ao soldado, mas ao sedicioso. Mas, convocado pela trombeta da piedade, imediatamente apresenta-te, despreza a vida, com grande prontidão entra no combate, rompe as fileiras dos adversários, bate no rosto do diabo, levanta o troféu. Do contrário, se em nada lesa a piedade, nem devasta nossos dogmas, isto é, o lado espiritual, nem és coagido a agir de um modo que não agrada a Deus, não te esforces em vão. A vida do cristão há de estar cheia de sangue, não de sangue alheio, mas permanecer disposta a derramar o seu. Com tamanha prontidão, portanto, derramemos o próprio sangue por Cristo, quanto alguém derrama água (pois é água o sangue difuso pelo corpo), e com tanta facilidade despojemo-nos da carne quanto de uma veste. Tal sucederá se não estivermos apegados ao dinheiro, às casas, detidos pelo amor aos bens presentes. Se os que levam vida militar renunciam a tudo, apresentam-se lá onde a guerra os convocar, empreendem a caminhada, prontamente sujeitam-se a tudo, muito mais nós, soldados de Cristo, estejamos dispostos e armados para a luta contra as paixões. Agora não há perseguição, e oxalá jamais exista, mas aparece outra espécie de guerra, a da cobiça das riquezas, a da inveja, a de outras paixões. Paulo a descreve: “O nosso combate não é contra o sangue, nem contra a carne” (Ef 6,12.14). Guerra sempre existente, por cuja causa quer que estejamos sempre armados: “Cingi os vossos rins”; é tempo. E explica que importa estar sempre munidos. É intensa a guerra pela língua, pelos olhos e, portanto, contenhamo-los. Forte a guerra da cupidez. Por isso, daí começam as munições do soldado de Cristo: “Cingi os vossos rins”; e acrescenta: “Com a verdade”. Por que: “Com a verdade”? A cupidez é ilusão e mentira, segundo diz Davi em certa passagem: “Meus rins estão cheios de ilusões” (Sl 38, 8). Não é prazer, mas uma sombra. Por isso diz: “Cingidos vossos rins com a verdade”, isto é, com o verdadeiro prazer, com a modéstia, a honestidade.
Em consequência, conhecedor do absurdo do pecado, e querendo que os nossos membros estejam armados de todos os lados persuade: “A paixão má não será justificada” (Eclo 1,22). Protejamo-nos com a armadura e o escudo. A ira é uma fera que facilmente assalta, e precisaremos de mil ameias e barricadas para vencê-la e coibila. Por isso, Deus fez principalmente uma parte do corpo com uma espécie de pedras, os ossos, qual reforço, a fim de evitar que uma vez rompidos e fraturados, pereça o ser vivo inteiro. É fogo e forte tormenta, e nenhum outro membro suportaria esta violência. Dizem também os médicos que por este motivo sob o coração acha-se o pulmão qual substrato suave, para que o coração repouse numa espécie de esponja, não num peito resistente e duro, para não se ferir com as pulsações. Precisamos, portanto, de couraça válida para conservar continuamente esta fera sossegada; precisamos também de um capacete. Pois, uma vez que na cabeça se encontra a faculdade de raciocinar, pode-se preservar, quando faz o que é conveniente, ou perder-se, em caso contrário. Por isso diz: “O capacete da salvação”. Pois o cérebro por natureza é mole, e portanto é protegido pelo crânio como uma concha. É para nós causa de todos os bens ou males, porque conhece o que convém e o que não. Igualmente os pés e as mãos precisam de armas. Não propriamente estas mãos, nem estes pés, mas os da alma. As mãos ocupadas no que importa, os pés indo aonde devem. Assim armados, poderemos vencer os inimigos, e cingir a coroa da vitória, em Cristo Jesus nosso Senhor, ao qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo glória, poder, honra, agora e sempre e nos séculos dos séculos. Amém.
A fé é grande e salutar, e sem ela não nos salvamos. Aliás, não basta por si só, mas exige vida honesta. Paulo também admoesta os que já participaram dos mistérios, nesses termos: “Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso”. Empenhemo-nos, visto que a fé não basta, mas também a acompanhe uma vida cheia de grande zelo. De fato, precisamos de muito zelo para subir ao céu. Não mereceram a terra os que no deserto sofreram tanta infelicidade, e não a conseguiram, porque murmuraram e fornicaram. Como alcançaremos o reino dos céus, com uma vida descuidada e indolente?
Esforcemo-nos, portanto. Paulo afirma: “É assim que corro, não ao incerto” (1Cor 9,26). É necessário correr, e vigorosamente. O corredor a ninguém vê, mesmo se atravessar um prado, ou lugares áridos e ásperos. O corredor não olha para os espectadores, mas para o prêmio. Sejam ricos ou pobres, zombem, louvem, ofendam, apedrejem, tomem a casa, mesmo os filhos, a mulher, seja quem for, não se volta; cuida somente de correr para receber o prêmio. O corredor nunca para, porque por pouco que for indolente, tudo perde. O corredor não só não relaxa antes do fim, mas principalmente então intensifica a corrida. Isso replico àqueles que dizem: Na juventude nos exercitamos, na juventude jejuamos, agora estamos velhos. Especialmente agora é preciso intensificar a piedade. Não me contes teus feitos de outrora. Agora sobretudo rejuvenesce, remoça.
Tu, porém, por que reduzes o esforço da corrida? É necessário bom ânimo, alma vigilante, a qual, contudo, se fortifica na velhice, ou melhor, principalmente então é vigorosa, alegre. O corpo, tomado de febres frequentes e doenças sucessivas, robusto embora, aflige-se. Libertado deste cerco, recupera forças. Assim também a alma tem febre na juventude, presa à ambição da glória, dos prazeres, do sexo e outros afetos. Ao chegar à velhice, repele as paixões, em parte pelo decurso do tempo, em parte pela sabedoria. A velhice diminui a força do corpo, não deixa que a alma, mesmo que o queira, se entregue a tais sentimentos, mas de certo modo reprime toda espécie de inimigos, coloca-a em lugar isento de tumultos, produz grande tranquilidade, e introduz maior temor. Ninguém mais do que os velhos sabe com certeza que vai morrer, e acha-se iminente a morte. Quando, portanto, aparta-se a cupidez mundana, intensifica-se a expectativa do juízo, abranda-se a teimosia da alma, não se torna mais atenta, se o quiser? Por que, então, vemos velhos piores do que os jovens? Respondes que é a suprema exasperação do vício, pois vemos os loucos, sem que ninguém os empurre, lançarem-se nos precipícios. Um velho a lutar com os vícios da juventude é o cúmulo do vício. Nem o jovem merece escusa, pois não pode dizer: “Não recordes dos desvios e da ignorância de minha juventude” (Sl 25,7). Com efeito, quem continua tal na velhice, manifesta que na juventude não o foi por ignorância, imperícia, idade, mas por indolência. Pode dizer: “Não recordes dos desvios e da ignorância de minha juventude” quem procede conforme convém à velhice, quem se converte na velhice; se, porém, na velhice comete os mesmos atos desonestos e vergonhosos, mereceria ser denominado ancião, se desrespeita a idade? De fato, quem diz: “Não recordes dos desvios e da ignorância de minha juventude”, fala como alguém que procede corretamente na velhice.
O que é: “Doutrina da justiça”? A meu ver, sugere o estilo de vida, de acordo com as palavras de Cristo: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus” (Mt 5,20). Diz o mesmo o Apóstolo: “Não pode degustar a doutrina da justiça”. Isto é, Não pode degustar a filosofia celeste, não pode assumir a vida perfeita e correta. Ou Cristo chama de justiça a palavra sublime. Ora, o Apóstolo disse que se haviam tornado lentos, mas não declarara de onde, deixando que o percebessem, a fim de não tornar o discurso aborrecido. Quanto aos gálatas, porém, admirou-se e duvidou. Maior consolo foi jamais esperar que isto acontecesse. Tal é a dúvida. Vês outra infantilidade? Outra perfeição? Tornemo-nos perfeitos, deste modo; é possível a nós, meninos e jovens, alcançar tal perfeição, não oriunda da natureza, mas da virtude.
Aprendamos também nós. Se ouvires que alguém não é grego, nem judeu, não penses logo que é cristão, mas examina bem. De fato, também os maniqueus, e todos os hereges tomam este aspecto, iludindo os mais simples.
Mas, se tivermos a faculdade de percepção da alma exercitada em discernir o bem e o mal, distingui-los-emos. De que maneira a nossa faculdade de percepção se exercita? Pela escuta contínua, pela perícia nas Escrituras. Se propusermos os erros deles, ouvires hoje e amanhã, e comprovares que não são válidos, entendeste tudo, tudo conheceste, e se hoje não percebeste, amanhã perceberás. “Possuem a faculdade de percepção exercitada.” Vês que havemos de exercitar nossos ouvidos à audição das realidades divinas, para não nos serem impingidas coisas estranhas? “Exercitados para discernir”, isto é, peritos.
É possível mencionar inúmeros dados a esse respeito. Todavia, ainda há algumas pessoas que nada sabem sobre as Escrituras. Por isso entre nós nada se faz de sadio, de proveitoso. Se alguém quiser conhecer a arte militar, tem necessidade de aprender as respectivas leis; se quiser ser perito piloto, carpinteiro, ou em outro ofício, necessita aprender as peculiaridades referentes ao ofício. Em nosso caso, nada de tal se verifica, embora estes conhecimentos reclamem muitas insônias. Escuta o profeta assegurar que esta arte é necessitada de instrução: “Filhos, vinde escutar-me, vou ensinar-vos o temor do Senhor” (Sl 34,12-15). O temor de Deus, em verdade, exige instrução. Em seguida diz: “Qual o homem que deseja a vida?”, a vida no além. E ainda: “Preserva tua língua do mal e teus lábios de falarem falsamente. Evita o mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a”. Sabeis qual o profeta, o historiógrafo, o apóstolo, ou evangelista que assim se expressou? Julgo que não, exceto poucas pessoas; e ainda a estas, se apresentarmos um testemunho de outra parte, acontecerá o mesmo que a vós. Eis, portanto, que vou repetir em termos diferentes: “Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito! Preservai vossa língua do mal e praticai o bem. Aprendei a fazer o bem!” (Is 1,16-17). Vês que a virtude precisa de instrução? Pois um diz: “Vou ensinar-vos o temor do Senhor”; e o outro: “Aprendei a fazer o bem”.
Sabeis onde se encontram essas locuções? Penso que não, exceto poucas pessoas. Ora, cada semana, vos são lidas duas ou três vezes. Ao subir o leitor, primeiro enuncia de quem é o livro, a saber, deste ou daquele profeta, ou apóstolo, ou evangelista; depois as lê a fim de melhor as notardes e saberdes não apenas onde se encontram, mas por que foram escritas, e por quem. Tudo em vão, porém, tudo inútil. Toda vossa diligência se esgota nas circunstâncias desta vida, sem consideração para as realidades espirituais. Por isso, aquelas sentenças não vos ocorrem e surgem várias dificuldades. Cristo disse, em verdade: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33). E foram ditas que virão por acréscimo; nós, contudo, invertemos a ordem, e procuramos a terra e os bens terrenos como se os outros fossem um suplemento. Por isso não obtemos nem estes nem aqueles. Enfim arrependamo-nos, anelando pelos bens vindouros. Assim também estes advirão. É impossível que, estando à busca do que agrada a Deus, não se consigam também os bens materiais. É sentença da própria Verdade. Não procedamos de forma invertida, mas sigamos o conselho de Cristo, para evitarmos queda completa. Deus, porém, é poderoso para nos converter, fazer-nos melhores, em Cristo Jesus nosso Senhor, o qual com o Pai, na unidade do Espírito Santo glória, império, honra e adoração, agora e sempre, e nos séculos dos séculos. Amém.
O que significa: “Elevemo-nos à perfeição”? Avancemos para o cume, isto é, levemos vida excelente. Como no A apoiam-se as letras e nos alicerces assenta todo o edifício, assim também a certeza da fé serve de base a uma vida pura. Sem ela é impossível ser cristão, como não se ergue o edifício antes de lançar os alicerces, nem se alcança perícia nas letras com exclusão dos elementos. Mas, se alguém parar nos elementos, em torno dos alicerces e não do edifício, não obterá coisa alguma; assim nos acontecerá. Se sempre permanecermos nos elementos da fé, jamais alcançaremos a fé perfeita. Não julgues diminuir a fé chamá-la de elemento; é a plenitude da força. Pois a declaração: “De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a doutrina da justiça, pois é uma criancinha!”, não significa dar-lhe o cognome de leite. Duvidar disso é próprio de uma mente fraca, necessitada de muitas exposições. Esses ensinamentos são sadios. Denominamos perfeito aquele em quem à fé acompanha uma vida reta. A pessoa que possui a fé e entretanto comete crimes, duvida, e ataca a doutrina, com razão a denominamos criancinha, que recorre aos elementos. Por isso se, durante inúmeros anos, tivermos fé, mas não inabalável, somos criancinhas, porque não manifestamos vida conveniente, e ainda estamos lançando o fundamento. A estes Paulo acusa quanto ao estilo de vida, e de outras faltas, como a de serem vacilantes e precisarem de lançar o fundamento do arrependimento das obras mortas
Em seguida, acrescenta: “que saborearam o dom celeste”, isto é, a remissão. “Receberam o Espírito Santo, experimentaram a beleza da palavra de Deus”, isto é, indica a doutrina. “E as virtudes do mundo que há de vir”. Quais? Operar milagres, ou o penhor do Espírito. “Não obstante decaíram; é impossível que eles renovem a conversão uma segunda vez, porque da sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias”. Renovar a conversão, isto é, pela penitência. Como? A penitência é rejeitada? Não a penitência, de modo algum, mas a renovação do batismo. Não disse: É impossível renovar-se pela penitência e calou-se, mas tendo dito: “É impossível”, acrescentou: “Porque crucificaram novamente”. Renovar, isto é, fazer-se novo. Transformar em homens novos é exclusivo do batismo: “Como a da águia, tua juventude se renova” (Sl 103,5).
É próprio da penitência libertar da vetustez e renovar os homens novos que envelheceram pelos pecados. É impossível retornar ao esplendor, todo ele, proveniente da graça. “Porque da sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias.” É o seguinte: O batismo é cruz: “Nosso velho homem foi crucificado com ele”; e ainda: “Se nos tornamos uma coisa só com ele por uma morte semelhante à sua”; e: “Pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte” (Rm 6,6.5.3). É impossível que Cristo seja crucificado de novo; seria traí-lo. Igualmente não podemos ser rebatizados.
Suplico-vos, portanto, comecemos. Um caso, por meio de preces intensas, outro, de assíduas lágrimas, outro pelo pesar. Nem o que é tão pequeno é inútil: “ Vi seu pesar, seu triste caminhar, diz o Senhor, e o curarei” (cf. Is 57,17). Humilhemos nossas almas pela esmola, o perdão às faltas do próximo, esquecidos das injúrias, sem desejo de vingança. Com a frequente recordação de nossos pecados, nada de exterior poderá nos exaltar: nem as riquezas, o poder, o domínio, a honra. Até mesmo se estivermos sentados no carro real, lastimemo-nos amargamente. Pois, também o bem-aventurado Davi era rei e dizia: “Todas as noites banho meu leito com lágrimas” (Sl 6,6). Não foi lesado pela púrpura, pelo diadema, nem se ensoberbeceu. Sabia que era homem; e lamentava-se porque tinha o coração contrito. O que são as realidades humanas? Cinza e pó, e poeira levada pelo vento, fumaça e sombra, folha e flor arrastadas para cá e para lá, sonho e conto, e fábula, vento e brisa suaves dissipados, voo inconsistente, torrente defluente, e até algo de mais insignificante, se houver.
Nada tão oportuno quanto a pureza de vida; nada tão harmonioso quanto a vida excelente, nada tão adequado quanto a virtude. “E produz vegetação útil aos cultivadores, receberá a bênção de Deus.” Neste lugar afirma que Deus é o autor de tudo, atingindo progressivamente os gentios, que atribuem a geração dos frutos ao poder da terra. Não são, afirma, as mãos dos agricultores que fazem a terra produzir frutos, e sim a ordem de Deus. Por isso declara: “Receberá a bênção de Deus”. Observa que ele não diz a respeito dos espinhos: Produz espinhos, nem empregou este nome apropriado. O que disse? Germinou espinhos, como se dissesse: Fez sair e expeliu. “É rejeitada, e está perto da maldição.” Ah! quanta consolação nestas palavras! “E está perto da maldição”, e não: Maldita. O que ainda não incidiu em maldição, mas está perto, também poderá distanciar-se. Consola-te não apenas com isto, mas ainda pelas palavras subsequentes. De fato, não disse: Está rejeitada e perto da maldição; será queimada. Como se exprimiu? “E acabará sendo queimada”. Assegura que, se persistir até o fim, sofrerá esta pena. Por esse motivo, se extirparmos e queimarmos os espinhos, poderemos gozar de inúmeros bens, tornarmo-nos honestos e sermos partícipes da bênção. Com razão denominou abrolhos o pecado: “Mas, se produzir espinhos e abrolhos”. Com efeito, seja qual for o ponto em que os tocares, ferem e picam, e são feios até no aspecto visível. Tendo-os suficientemente atingido, atemorizado e atacado, de novo cura, para evitar que, rejeitando-os demais, fiquem prostrados. De fato, não adula inteiramente, a fim de não os exaltar; nem fere gravemente para não prostrá-los; mas utilizando o que fere de leve, aplica remédios que curam, conforme deseja.
Ouvindo isso, suplico-vos, sirvamos os santos. Todo fiel, enquanto fiel, é santo. Apesar de secular, é santo: “O marido não cristão é santificado pela esposa, e a esposa não cristã é santificada pelo marido cristão” (1Cor 7,14). Vês que a fé santifica. Estendamos as mãos ao secular infeliz. Não demonstremos zelo somente pelos (monges) habitantes dos montes. Eles são, na verdade, santos pela vida e pela fé; os outros são pela fé, muitos, porém, igualmente pela vida. Não visitemos no cárcere apenas um monge, e deixemos de procurar um secular, porque ele também é santo e irmão. Mas se for impuro e criminoso? Escuta o que diz Cristo: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Age por causa de Deus. No entanto, o que estou dizendo? Mesmo se virmos um dos gentios no infortúnio, devemos beneficiá-lo; e simplesmente a todo homem na adversidade; muito mais, contudo, ao secular fiel. Escuta as palavras de Paulo: “Pratiquemos o bem para com todos, mas sobretudo para com os irmãos na fé” (Gl 6,10). Mas não sei de onde se introduziu este costume, de onde invadiu. Procurar somente os monges para beneficiá-los, curiosamente perscrutando e dizendo: Não estendo a mão se não for digno, justo, se não operar milagres. A esmola fica diminuída, ou antes com o decorrer do tempo é eliminada. Ora, é esmola também a que for dada aos pecadores, aos réus. Não é esmola dar aos que procederam bem, e sim ter compaixão dos pecadores.
“É misericórdia que eu quero e não sacrifício” (Os 6,6). Vês quais os sacrifícios que aplacam a Deus? Vês que uns há muitos séculos foram abolidos, outros introduzidos em seu lugar? Ofertemos destes, portanto. Pois, aqueles são próprios das riquezas e daqueles que as possuem, mas estes são peculiares à virtude. Aqueles são exteriores, estes interiores; aqueles qualquer um pode oferecer, estes, contudo, poucos. Quanto o homem é melhor e mais importante do que a ovelha tanto este sacrifício do que aquele. Neste apresentas por vítima a tua alma. Existem outras vítimas, verdadeiros holocaustos, a saber, os corpos dos santos mártires, em que alma e corpo são santos e exalam odor suave. Podes tu também, se te apraz, oferecer tal sacrifício. Como, se teu corpo não é queimado? É possível por outro fogo, como o da pobreza voluntária, da tribulação. É possível levar vida delicada, lauta e esplêndida, mas escolher vida laboriosa e dura e mortificar o corpo não é holocausto? Mortifica e crucifica teu corpo, e igualmente obterás a coroa desse martírio. Na outra espécie a espada opera, nesta é a prontidão da alma. Não queime, nem te prenda à ambição do dinheiro, mas seja queimada e extinta esta torpe ambição pelo fogo do espírito, seja cortada pelo gládio do Espírito. Eis o belo sacrifício, que não necessita de sacerdote, mas o oferente o constitui. Belo sacrifício que se realiza cá embaixo e logo sobe às alturas. Não nos admiramos de que outrora descesse um fogo que tudo consumia? É possível que agora também desça um fogo muito mais admirável a consumir tudo o que se lhe oferece. Ou melhor, verdadeiramente não consome, mas eleva tudo ao céu. Não reduz a cinzas, mas oferece os dons a Deus.
Tais eram as ofertas de Cornélio. “As tuas orações e as tuas esmolas subiram até diante de Deus, e e ele se lembrou de ti” (At 10,4).
Por isso acontecem rapidamente mudanças e quedas. Nem assim aprendemos. Frequentes mortes imaturas e julgamo-nos imortais, como se jamais devêssemos morrer. Roubamos, ambicionamos o alheio, como se jamais devêssemos prestar contas. Edificamos como se para sempre devêssemos ficar aqui. Nem a palavra de Deus que ressoa cotidianamente em nossos ouvidos, nem a realidade nos instruem. Não há dia, nem hora, em que não se vejam assíduos enterros. Tudo em vão! Coisa alguma toca nossa dureza. Nem diante da infelicidade alheia é possível a melhoria. Ou antes, não queremos. Se choramos sozinhos, contraímo-nos. Retire Deus a sua mão, reerguemos as nossas. Ninguém aprecia as coisas do alto, ninguém despreza as terrenas, ninguém contempla o céu. À semelhança dos porcos que olham para o chão, inclinados para o ventre, e revolvem-se na lama, muitos homens não percebem que se sujam em horrível lodo. É melhor poluir-se em imundo lodo do que em pecados. Pois quem se suja no lodo, lava-se rapidamente, e torna-se semelhante os que nem começaram a escorregar naquela voragem. Os que, porém, caíram no báratro do pecado, contraem uma mancha que a água não purifica, mas exige longo tempo, apurada penitência, lágrimas e pranto, maior e mais ardente lamentação do que por ocasião da morte de seres muito queridos. Com efeito, estas manchas nos vêm de fora e logo as tiramos; as outras provêm de dentro e dificilmente as retiramos por meio de abluções. “Com efeito, é do coração que procedem más intenções, fornicações, adultérios, roubos, falsos testemunhos: (Mt 15,19). Por isso dizia o profeta: “Ó Deus, cria em mim um coração puro” (Sl 51, 12); outro, contudo: “Purifica teu coração da maldade, Jerusalém” (Jr 4,14). Vês que agir bem depende de nós e de Deus? E ainda: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Purifiquemo-nos à medida de nossas forças; apaguemos nossos pecados. O profeta ensina de que modo apagá-los, nesses termos: “Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações!” (Is 1,16). Que sentido tem a locução: “Minha vista”? Alguns parecem não ter vícios, diante dos homens; perante Deus são sepulcros caiados. Por isso diz: Afastai-vos deles, conforme eu vejo. “Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito! Fazei justiça ao humilde e ao pobre! Então, sim, poderemos discutir, diz o Senhor. Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã” (Is 1,17-18). Vês que importa que primeiro nos purifiquemos e então Deus purifica? Pois tendo dito: “Lavai-vos, purificai-vos!”, acrescentou: Eu os tornarei alvos. Ninguém, apesar de ter chegado às profundezas do vício, perca a esperança. Mesmo se adquirires o hábito e quase a natureza do vício, não temas. Não são os de cores fracas e apagadas, mas os que estão perto da própria essência, que chegarão ao estado contrário. Não somente disse lavar, mas tornar-se alvos como a neve e como a lã para nos fornecer boas esperanças. Por conseguinte, a grande força da penitência nos torna alvos como a neve e a lã, mesmo se o pecado invadir e tingir nossas almas. Apliquemo-nos, portanto, a nos purificarmos. Não são ordens pesadas: “Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!” (Is 1,17). Vês como sempre têm junto de Deus grande força a misericórdia e a defesa dos oprimidos? Empreendamos estas boas obras, e conseguiremos os bens futuros pela graça de Deus. Oxalá os alcancemos todos nós em Cristo Jesus nosso Senhor.
O combate se encontra na praça, a luta, as vagas, a tempestade se acham nos negócios diurnos. Por isto precisamos de armas. Fortes armas são as preces. Necessitamos de ventos favoráveis, devemos aprender tudo, a fim de passarmos ao longo dos dias sem naufrágios e ferimentos. Muitos são os escolhos diários, de sorte que muitas vezes o escaler choca-se contra eles e afunda. Por este motivo precisamos das preces, especialmente das matutinas e noturnas.
Trechos retirados do livro: Patrística, vol 27, tomo 3.
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