Levítico: Visão geral + Comentário de São João Crisóstomo (Doutor da Igreja)

by - fevereiro 23, 2021

Levítico: Visão geral + Comentário de São João Crisóstomo



1) Introdução

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2) O que é um Doutor da Igreja? 


Os Doutores da Igreja são homens e mulheres ilustres que, pela sua santidade, pela ortodoxia de sua fé, e principalmente pelo eminente saber teológico, atestado por escritos vários, foram honrados com tal título por desígnio da Igreja. Os Doutores se assemelham aos Padres da Igreja, dos quais também diferem. Padres da Igreja são aqueles cristãos (Bispos, presbíteros, diáconos ou leigos) que contribuíram eficazmente para a reta formulação das verdades da fé (SS. Trindade, Encarnação do Verbo, Igreja, Sacramentos. ..) nos tempos dos grandes debates e heresias. O seu período se encerra em 604 (com a morte de S. Gregório Magno) no Ocidente e em 749 (com a morte de S. João Damasceno) no Oriente. 

Para que alguém seja considerado Padre da Igreja, requer-se antiguidade (até os séculos VII/VIII), ao passo que isto não ocorre com um Doutor.Para os Padres da Igreja, basta o reconhecimento concreto, não explicitado, da Igreja, ao passo que para os Doutores se requer uma proclamação explicita feita por um Papa ou por um Concílio. Para os Padres, não se requer um saber extraordinário, ao passo que para um Doutor se exige um saber de grande vulto. 

Em Suma 


Doutor da Igreja é aquele cristão ou aquela cristã que se distinguiu por notório saber teológico em qualquer época da história. O conceito de Doutor da Igreja difere do de Padre da Igreja, pois Padre da Igreja é somente aquele que contribuiu para a reta formulação dos artigos da fé até o século VII no Ocidente e até o século VIII no Oriente. Há Padres da Igreja que são Doutores. Assim os quatro maiores Padres latinos (S. Ambrósio, S. Agostinho, S. Jerônimo e S. Gregório Magno) e os quatro maiores Padres gregos (S. Atanásio, S. Basílio, S. Gregório de Nazianzeno e S. João Crisóstomo). 

Portanto, o parecer de um Doutor da Igreja é maior do que achismos, independente do assunto em estudo ou discussão.


Visão geral do Livro de Levítico


Levítico, do grego Λευιτικόν, "Leuitikon", do original hebraico "torat kohanim" ou em hebraico: וַיִּקְרָא, "Vaicrá" - "Chamado por Deus". É o 3º livro da Bíblia e começa logo após o êxodo dos Israelitas de sua escravidão no Egito quando Deus os trouxe até a base do Monte Sinai e convidou Israel para uma aliança, mas Israel rapidamente se rebelou e quebrou essa aliança.

No entanto, Deus queria que Sua gloriosa presença habitasse no meio de Israel, no Tabernáculo, mas o pecado de Israel danificou a relação desse povo com Deus. No final do livro anterior, Êxodo, Moisés, como representante de Israel, estava autorizado a entrar na presença do Senhor, dentro da tenda. O livro de Levítico começa nos lembrando desse problema fundamental: "O Senhor chamou a Moisés de DENTRO da tenda". O tema do livro é: Como pode Israel, envolto no pecado e no egoísmo, se reconciliar com Deus que é Santo?

Deus graciosamente provê uma maneira para que essas pessoas pecadoras e corruptas possam viver em Sua presença.

Mas antes de prosseguirmos vale colocarmos um olhar atento sobre esse traço fundamental da personalidade de Deus e que é o cerne para entender todo este livro: a santidade de Deus. 

A palavra "santo" significa simplesmente "ser separado" ou "único" e na Bíblia, Deus é separado de todas as outras coisas por causa do seu papel único como o Criador de tudo, como o próprio Autor da vida, então, se Deus é Santo, o espaço ao redor de Deus também é Santo, é cheio de Sua bondade, vida, pureza e justiça. O livro passa muito tempo falando justamente disso, até mesmo quem tocar num objeto consagrado recebe a influencia da santidade de Deus. 

Se o povo de Israel, que é injusto e pecador, quiser viver na presença santa de Deus eles também precisam se tornar santos, seus pecados precisam ser curados. O livro fala da dedicação do Senhor em tratar os pecados desse povo tão cabeça dura, que O trocou por um boi de metal e que reclama o tempo todo. O livro todo é sinal da bondade de Deus e de sua ação didática em fazer com que o povo entenda que Ele é santo e que seu povo também deve ser. 

O livro tem um maravilhoso design simétrico, ele explora as 3 principais maneiras que Deus desenvolveu para que  Israel possa viver em Sua presença. 

As seções externas são descrições dos rituais que Israel deveria praticar na Santa Presença de Deus e as seções internas focam no papel dos sacerdotes de Israel, como mediadores entre Deus e Israel; já dentro das seções internas, existem duas seções similares que focam na pureza de Israel. No meio do livro, tem um ritual-chave, o Dia da Expiação, que é o laço que une todas as seções do livro, que se conclui com uma pequena seção onde Moisés clama a Israel para serem fiéis à essa aliança. 


1º Seção de rituais

A primeira seção explora os 5 principais tipos de rituais sacrificiais que Israel deveria realizar. 2 deles eram maneiras que os Israelenses poderiam dizer "obrigado" oferecendo as primícias, os 3 outros sacrifícios eram maneiras diferentes de se pedir perdão a Deus e aqui um israelita iria oferecer o sangue de um animal enquanto confessava seu pecado, que gerou mais maldade e morte no bondoso mundo de Deus. Mas Deus, ao invés de destruir essa pessoa, quer, é claro, perdoa-la, então, esse animal simbolicamente morre em seu lugar e expia, ou cobre o seu pecado. Então, através desses rituais, os israelitas estavam sendo constantemente lembrados da graça de Deus, mas também de Sua justiça, e da seriedade do pecado, de sua maldade e suas consequências. 


2º Seção de rituais

O segundo grupo de rituais apresenta os 7 festivais anuais de Israel e cada um deles reconta uma parte da história, sobre como Deus redimiu-os da escravidão no Egito e os guiou através do deserto a caminho da Terra Prometida. E por celebrar esses festivais regularmente, Israel se lembraria quem eles são e quem Deus é. 


3º Seção de rituais

É a que trata dos Sacerdotes de Israel. Aarão e seus filhos são os primeiros a serem ordenados, entrando na presença de Deus, representando Israel. 

Nessa seção nós vemos as qualificações para ser um sacerdote. Os sacerdotes eram chamados para terem o mais alto nível de integridade moral e santidade ritual porque eles representavam o povo perante Deus, mas eles também representavam Deus perante o povo, nós descobrimos assim porque a santidade dos sacerdotes é tão importante. 


Logo depois que a família de Aarão foi ordenada, dois de seus filhos entram diretamente na presença de Deus e violam flagrantemente as regras e no mesmo momento, eles são consumidos pela santidade de Deus.  É um lembrete assombroso do paradoxo de viver na presença santa de Deus, porque Ele é bondade pura, mas se torna perigosa para aqueles que se rebelam e insultam Sua santidade. Por isso, é importante que os sacerdotes de Israel se tornem santos e também que todo o povo de Israel se torne santo.

Os capítulos 11 a 15 tratam sobre a pureza ritual requerida para todo o povo de Israel e os capítulos 18 a 20 são sobre a pureza moral do povo.

Por Deus ser santo e separado, os israelitas também precisam estar num estado de santidade quando eles entram na presença Dele, isso era considerado ser "limpo" ou "puro", a presença de Deus era uma zona proibida para qualquer um que não estivesse em santidade e isso era considerado ser "sujo" ou "impuro". Um israelita poderia se tornar impuro de algumas maneiras: por contato com fluídos reprodutivos, por possuir uma doença de pele, por tocar mofo ou fungo, ou tocar o corpo de algo que estivesse morto. Para os israelitas, tudo isso estava associado com mortalidade, com a perda da vida, o que nos leva ao simbolismo central dessas ideias. 

A pessoa se torna impura quando se contamina por tocar a "morte", de certa forma. E a morte é o oposto da santidade de Deus, porque a essência de Deus é a vida. O pecado estava em entrar na presença de Deus carregando esses símbolos de morte e impureza no próprio corpo. Esse ponto nos dá uma boa reflexão, ainda hoje. 

A última forma de se tornar impuro era por comer certos tipos de animais. As leis de alimentação kosher estão descritas nessa seção e existem muitas teorias do porque esses animais eram considerados impuros e proibidos, poderia ser para promover a higiene, ou para evitar tabus culturais; a verdade é que o texto simplesmente não é explícito. Mas o ponto básico de todos esses capítulos é muito claro: todas essas regras juntas funcionam como um conjunto elaborado de símbolos culturais que fazem Israel se lembrar de que a santidade de Deus deveria afetar todas as áreas de suas vidas. 

Isso se relaciona com a pureza moral de Israel. Os israelitas eram chamados a viver de forma diferente dos canaanitas, eles deveriam cuidar do pobre ao invés de ignora-los, deveriam ter um alto nível de integridade sexual e promover justiça durante toda a vida.

E por fim chegamos ao centro do livro: o Dia da Expiação. 

Nem todos os pecados e rebeliões do povo de Israel tinham sido cobertos através dos sacrifícios individuais, então, uma vez ao ano, o Sumo Sacerdote levava dois bodes. Um desses bodes se tornaria uma oferta de purificação e expiaria dos pecados do povo e a outro era chamado de "Bode Expiatório".

O sacerdote iria confessar os pecados de Israel e simbolicamente os passaria para o bode e então o bode seria enviado para o deserto, novamente, essa é uma imagem muito poderosa do desejo de Deus de remover o pecado e suas consequências, do seu povo, para que Deus pudesse viver em paz com eles. 

Atualmente é celebrado no dia 10 do sétimo mês no calendário israelita, é chamado de Dia do Juízo, ''Yom Kippur" pelos judeus, o Dia da Expiação, ou Dia do Perdão. As orações dos judeus nesse dia são o Vidui, uma confissão, e Al Chet, uma lista de transgressões entre o homem e Deus e o homem e seu semelhante. É interessante notar duas coisas: primeiro, as transgressões estão em ordem alfabética (em hebraico). Isto torna a lista bastante abrangente, além de permitir a inclusão de qualquer transgressão que se queira na letra apropriada. O Vidui e Al Chet estão no plural, o que pretende transmitir a ideia de que o povo judeu é um povo "entrelaçado", onde todos devem ser responsáveis pelos outros. Mesmo não cometendo uma determinada ofensa, pretende-se transmitir uma carga de responsabilidade por aqueles que a cometeram - especialmente se a transgressão pudesse ter sido evitada por aqueles que não arcarão com as culpas.

O livro concluí com Moisés chamando Israel para ser fiel a todos os termos da aliança e ele descreve as bênçãos de paz e abundância que resultarão se Israel obedecer todas essas leis e também os adverte que se eles forem infiéis e desonrarem a santidade de Deus isso resultará em desastre e em último caso, exílio da terra prometida a Abraão. 

Se você quer ver como o Levítico se encaixa na história geral da Bíblia você pode dar uma olhada nos primeiros versos do próximo livro da Bíblia: Números. Ele começa: "O Senhor falou com Moisés DENTRO da tenda". 

Moisés pode entrar na presença de Deus representando Israel, o que Deus mandou no livro de Levítico funcionou! (claro!). 

Apesar das falhas de Israel, Deus proveu uma maneira para que seus pecados fossem cobertos, para que Ele vivesse pacificamente com eles. 



Comentário de São João Crisóstomo

“O Sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está na ordem das coisas celestes: e isso está correto. Pois não foi um homem, nem um anjo, nem um arcanjo, nem nenhuma outra potência criada, mas o próprio divino Paráclito que estabeleceu esse lugar: foi ele quem deu aos homens a sublime confiança de exercer, ainda que revestidos de carne, o ministério dos puros espíritos. É preciso então que o sacerdote seja puro, como se ele estivesse no céu junto com os espíritos bem-aventurados. Que majestosa paramentação havia antes da lei da graça! Como tudo inspirava um santo temor! As sinetas, as granadas, as pedras preciosas que brilham sobre o peito e a éfode do Grande Sacerdote; o diadema, a tiara, o manto que se arrasta no chão, a espada de ouro, o santo dos santos e sua impenetrável solidão! E se considerarmos os mistérios da lei da graça, veremos como era vã a pompa exterior da antiga lei, e compreenderemos bem, nesse caso particular, a verdade de tudo o que foi dito sobre essa lei em geral: o que havia de notável nesse primeiro ministério sequer constitui uma glória, quando comparada à glória supereminente da segunda[1]. Quando você vê o Senhor imolado e estendido sobre o altar, o sacerdote que se inclina sobre a vítima e ora, e todos os fiéis cobertos de púrpura desse sangue precioso, você ainda crê estar entre os homens, e mesmo sobre a terra? Não foi antes você transportado aos céus, e, tendo banido todo pensamento carnal, como se fosse puro espírito, despojado da carne, não contempla você as maravilhas do mundo superior? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aquele que assenta no alto, à direita do Pai, deixa-se nesse momento tomar pelas mãos de todos, e se entrega aos que desejam recebê-lo e apertá-lo junto ao coração; é isso que se passa aos olhos da fé. Essas coisas parecem-lhe dignas de desdém? São elas de natureza tal que as possamos considerar abaixo de nós?”.


“Vamos considerar a excelência de nossos santos mistérios por um outro prodígio. Imagine Elias, uma multidão imensa de pé ao redor dele, e a vítima estendida sobre as pedras; todos os assistentes aguardando no mais profundo silêncio, apenas o Profeta que ora em alta voz; e, de repente, a chama se precipita do céu para o holocausto. Tudo isso é maravilhoso, e próprio para penetrar a alma de temor. Mas agora passe desse espetáculo para a celebração de nossos mistérios, e verá coisas que excitam e ultrapassam toda admiração. O sacerdote está de pé, e ele faz com que desça do céu, não o fogo, mas o Espírito Santo. Sua oração é longa: ela se eleva, não para que uma chama venha do alto devorar as oferendas que foram preparadas, mas para que a graça, descendo sobre a hóstia, abrase por meio dela a todas as almas, tornando-as mais brilhantes do que a prata depurada no fogo. Não é preciso estar privado de razão e de senso para ser capaz de desprezar um mistério tão temível? Não sabe você que uma alma humana jamais suportaria o fogo do sacrifício, mas que seríamos prontamente destruídos sem o socorro poderoso da graça de Deus?”.


 “Se refletirmos que é um mortal, envolvido pelos laços da carne e do sangue, que pode se aproximar dessa natureza bem-aventurada e imortal, ficaremos espantados com a profundidade desse mistério, e ao mesmo tempo penetrados pela grandeza do poder que a graça do Espírito Santo confere aos sacerdotes. É por meio deles que essas maravilhas se realizam, e muitas outras não menos importantes, tanto para nossa salvação como para nossa glória. Criaturas que habitam sobre a terra que têm sua existência ligada à terra, são chamadas à administração das coisas do céu, ao exercício do poder que Deus não concedeu sequer aos anjos e arcanjos! Pois não é a eles que foi dito: ‘O que ligardes na terra será ligado no céu, e o que desligardes na terra será desligado no céu[2]’. Também os poderosos da terra têm o poder de ligar, mas somente os corpos; a ligação de que fala o Evangelho é um laço que arrebata a alma, e tudo o que se estende até os céus, daquilo que aqui em baixo fazem os sacerdotes, Deus o ratifica no alto; o Mestre confirma a sentença dos servidores”.


“Ele lhes deu, por assim dizer, a onipotência no céu. Ele disse: ‘Aqueles a quem perdoardes os pecados, esses lhes serão perdoados; aos que os retiverdes, ser-lhes-ão retidos[3]’. Pode haver maior poder do que esse? O Pai entregou ao Filho todo julgamento, e vemos agora o Filho entregar esse mesmo poder inteiramente nas mãos dos seus sacerdotes. Não diríamos que Deus primeiramente os introduziu no céu, que os elevou acima da natureza humana e que os libertou das paixões, para em seguida revesti-los dessa suprema autoridade? Se um rei admite que um de seus súditos partilhe de seu poder, concedendo-lhe o privilégio de aprisionar ou libertar a quem melhor lhe parecer, tamanha honra atrairia contra ele a inveja e a consideração de todo o mundo; e aquele que recebe de Deus um poder tão superior àquele, tanto quanto o céu é superior à terra e a alma ao corpo, não terá recebido, segundo o juízo de algumas pessoas, mais do que uma dignidade medíocre, uma dignidade da qual se pudesse pensar que alguém desdenharia tanto a honra como o dom! Que extravagância! Desprezar uma função sem a qual não existe a salvação para nós, nem a realização das promessas divinas! Ninguém pode entrar no reino de Deus, se não renascer da água e do Espírito Santo[4]; quem não comer da carne do Senhor e não beber de seu sangue, estará excluído da vida eterna’[5]. Então, se esses benefícios não podem ser conferidos senão por mãos santificadas, ou seja, pelas mãos dos sacerdotes, de que meio disporíamos, sem seu ministério, para evitar o fogo do inferno, ou para alcançar as coroas que nos foram reservadas?”.


“A gravidez espiritual das almas é seu privilégio; somente eles as fazem nascer para a vida da graça por meio do batismo; por meio deles somos sepultados com o Filho de Deus, por meio deles nos tornamos membros desse Chefe divino. Assim é que devemos respeitá-los mais do que os príncipes e reis, e ainda amá-los mais do que aos nossos próprios pais. Esses nos fizeram nascer do sangue e da vontade da carne; os sacerdotes nos fazem nascer como filhos de Deus; nós lhes devemos nossa feliz regeneração, a verdadeira liberdade da qual desfrutamos, a nossa adoção na ordem da graça”.


“Somente os sacerdotes da antiga lei tinham o direito de curar a lepra, ou melhor: eles não a curavam, mas julgavam se as pessoas estavam curadas; e você sabe com quanto ardor se buscava a dignidade sacerdotal entre os judeus[6]. Quanto aos nossos sacerdotes, não é a lepra do corpo, mas a da alma, que eles receberam o poder de curar, não de verificar, mas de operar a cura por inteiro. Aqueles que os desprezam são assim mais sacrílegos do que Satã e seus companheiros[7], e merecedores de um castigo mais severo. Eles, desejando uma dignidade que não lhes cabia, ao menos deram provas de uma estima especial naquilo que faziam, pela própria ambição que os levara à usurpação. Mas hoje em dia, quando o sacerdócio está de posse de uma autoridade e de uma excelência muito mais relevantes do que outrora, desprezá-la constitui um crime ainda mais odioso do que o de pretendê-la por motivos de ambição. Não há nenhuma paridade, sob o aspecto do ultraje, entre pretender uma dignidade cujo direito não se tem, e desprezar os grandes bens que o Sacerdócio guarda em si, tanto está longe a admiração do desdém, tanto o segundo crime é mais grave do que o primeiro. Que alma seria tão miserável para desprezar tão augustas prerrogativas? Nenhuma, a menos que estivesse submetida ao aguilhão e ao poder de Satanás. Mas voltemos ao tema que deixamos para trás”.


“Dizia Paulo: ‘Quem sofre, sem que eu sofra com ele? Quem se escandaliza sem que eu queime?’. Assim deve ser o sacerdote, ou melhor, nem isso basta: isso ainda é pouco, é nada em comparação com o que vou dizer”.


“Escute: ‘Eu gostaria que Jesus Cristo tornasse a mim próprio anátema em favor de meus irmãos, eles que são de minha própria raça segundo a carne[11]’. Todo homem que for capaz de proferir essas palavras, cuja alma for sublime o bastante para se elevar às alturas de tal desejo, merecerá ser condenado caso fuja do episcopado. Mas quem se afastar dessa virtude tanto quanto eu, será odioso, não se recusar, mas se aceitar”.


A alma do sacerdote é açoitada por muito mais tempestades do que os ventos que revoltam os mares.

Os monstros que esse recife abriga; uma vez aprisionado por eles, seguimo-los por onde nos arrastarem, e descemos tão baixo na servidão que, para agradar às mulheres, fazemos coisas que não convém nem mencionar. É em vão que a lei de Deus excluiu as mulheres desse santo ministério, pois, querendo forçar as portas do santuário por si mesmas e não o podendo fazer, elas fazem tudo pela mão de seus agentes, cuja autoridade usuraram, tendo-os elevado ao episcopado e fazendo-os descer até virar tudo de cabeça para baixo, demonstrando a aplicação do provérbio: os de baixo governam os chefes. E quisesse Deus que esses de baixo fossem homens! Mas são as mulheres, que sequer têm o direito de ensinar. Que digo eu, ensinar? Pois a elas o bem-aventurado Paulo proibiu até mesmo a palavra dentro da Igreja! Entretanto, pelo que ouvi dizer, deixaram-nas ganhar tamanha liberdade, que as vemos manipular imperiosamente os bispos, e falar-lhes com mais superioridade do que os mestres a seus escravos.


“Não se pense, porém, que eu lanço essas acusações sobre todos os ministros da Igreja. Existem também os que escapam a essa espécie de rede, e são inclusive mais numerosos do que os que se deixam prender. Praza a Deus que eu não seja culpado da imprudência de acusar o sacerdócio desses vícios que não pertencem senão ao homem! O ferro não é culpado das mortes, nem o vinho da embriaguez, nem a força da violência, nem a coragem da temeridade cega; os culpados são aqueles que fazem mau uso dos dons de Deus, e são esses que as pessoas sensatas acusam e punem. É o Sacerdócio que terá o direito de nos acusar, se exercermos mal nossas funções. Longe de ser ele a causa dos males que assinalei; somos nós que o desonramos, na medida em que tais máculas existem em nós, quando o entregamos aos primeiros que aparecem, a homens que, sem ter previamente consultado suas forças, nem atentado para o peso do fardo, em apoderam do sacerdócio como de uma presa que lhes é oferecida; mas quando eles começam a trabalhar, se perdem por sua imperícia, e afligem com males sem número os povos que foram encarregados de conduzir. 


“De onde nascem, pensará você, essas perturbações que desolam nossas Igrejas? Por minha conta, não posso assinalar outra causa que a falta de prudência e de circunspecção na escolha e na eleição dos ministros. É preciso que a cabeça seja muito forte para dominar e para dissipar os vapores perniciosos que as partes inferiores do corpo lhe enviam. Se acontecer de ela ser fraca, então, impotente para afastar essas influências malignas, ela se torna ainda mais fraca do que era naturalmente, e arrasta todo o resto à sua ruína. 


"Disse o Senhor: ‘Sereis felizes, quando os homens vos ultrajarem e vos perseguirem, quando digam falsamente toda espécie de mal contra vós, por minha causa; alegrai-vos e tremei de alegria, porque uma grande recompensa vos estará reservada nos céus[13]’. Esse é o caso, quando os próprios colegas cassam e depõem alguém por inveja, por uma frouxa complacência para com estranhos, por inimizade ou por qualquer outro motivo injusto; mas sofrer a mesma perseguição da parte de inimigos declarados é algo de mais meritório ainda, e a malícia dos perseguidores traz então benefícios que é inútil descrever”.


É preciso assim visitar todos os recantos de nosso coração, e buscar cuidadosamente se alguma chama, mal extinta, desse desejo, não se esconde ali contra nossa vontade. Não basta estar isento dessa paixão desde o começo, é preciso ainda se considerar feliz por tê-la sob domínio, mesmo no seio do poder e da elevação. Quanto àquele que, antes de alcançar as honrarias, nutre em si mesmo esse desejo insaciável e pernicioso, não somos capazes de dizer em qual ardente fornalha ele estará se atirando se conseguir chegar aonde quer. 


É preciso que um sacerdote seja sóbrio, clarividente; que ele tenha olhos para observar a tudo, pois ele não vive apenas para si, mas para todo o povo[14]


“Nada perturba mais a clareza da inteligência, nada ofusca mais a penetração do espírito, do que a cólera, desordenada e impetuosa. A cólera, foi dito, põe a perder até mesmo os sábios[16]. É como um combate noturno, em meio do qual a vista obscurecida já não distingue os amigos dos inimigos, nem o homem honesto do homem desprezível; a cólera faz com todos da mesma maneira; pouco importa o mal que ela faz a si própria; ela se resolve assim, ela sente uma espécie de prazer que tem que satisfazer a qualquer custo. Sim, esse abrasamento do coração não vem sem um certo prazer, e ele chega a exercer sobre a alma uma tirania mais imperiosa do que qualquer outro prazer, e assim vira de cabeça para baixo seu estado normal. A cólera arrasta naturalmente atrás de si o orgulho insolente, as inimizades sem causa, os ódios cegos, as ofensas gratuitas; ela dispõe constantemente às provocações e ultrajes. O que não faz ela dizer, aquele a quem possui! A alma aturdida em seu tumulto, arrastada por sua violência, já não encontra apoio para resistir aos seus violentos ataques”.


“Tanto os bons exemplos servem para inflamar a santa emulação da virtude, quanto os maus contribuem para espalhar entre os povos o relaxamento e a negligência na observação do dever. É preciso assim que o sacerdote tenha uma alma que irradia beleza e cuja luz ilumine e alegre as almas daqueles que têm os olhos voltados para ele. As faltas dos homens vulgares permanecem enterradas na sombra e só prejudicam aqueles que as cometem. O escândalo de um homem que ocupa uma posição elevada no mundo está exposto a todos os olhares e se torna uma espécie de flagelo público, tanto por autorizar a tibieza daqueles que se assustam com os rudes exercícios da virtude, como por desencorajar os que desejariam levar uma vida melhor. Acrescente a isso que as faltas das pessoas individuais, quando conhecidas, não têm uma influência perigosa sobre as disposições dos demais; mas o sacerdote, nada do que ele faz permanece oculto, e cada uma de suas ações, indiferentes em si, tomam um aspecto sério perante a opinião geral. Os erros são medidos pela gravidade do delito quanto pela posição daqueles que os comete. Que o sacerdote se revista, por assim dizer, de um zelo estrito, de uma contínua vigilância sobre si mesmo, como se fosse de uma armadura de diamante que não deixa nenhum ponto fraco ou espaço a descoberto por onde possa penetrar o golpe mortal. Tudo o que o cerca tanta a todo tempo feri-lo e abatê-lo, não apenas seus inimigos declarados, como ainda os que fingem ser seus amigos”.


“É preciso escolher, para o sacerdócio, almas semelhantes aos corpos dos três jovens que a graça divina tornou invulneráveis em plena fornalha da Babilônia. O fogo com que estão ameaçados não se alimenta de gravetos, de resina ou de estopas, mas de materiais mais perigosos; é um fogo que não se vê, é o fogo da inveja que envolve o sacerdote com suas chamas devoradoras, chamas que se erguem, que se estendem e se atiram sobre sua vida, e que a penetram por inteiro com uma atividade que jamais o fogo material chegou a ter contra os corpos dos três jovens. Assim que a inveja encontra uma ponta de matéria combustível, sua chama se agarra a ela imediatamente, consumindo essa parte defeituosa; quanto ao restante do edifício, ainda que ele seja mais brilhante do que os raios do sol, ela o destrói com sua fumaça e o enegrece por completo. Enquanto a vida do sacerdote está em perfeito acordo com a regra de seus deveres, nada há para temer das armadilhas de seus inimigos. Mas se uma única irregularidade, por menor que seja, escapar à sua atenção (ainda que isso seja mais do que perdoável, por ser ele homem, e por estar atravessando esse mar semeado de recifes que se chama ‘vida’), e eis que todas as suas virtudes já não lhe servem de nada contra as línguas de seus acusadores; basta um nadinha para ofuscar toda sua vida. Todo mundo julga o sacerdote, e o julga como se ele já não estivesse em sua carne, como se não pertencesse à raiz comum a todos, como se fosse um anjo liberto de todas as fraquezas do homem”.



“E além da inveja, existe ainda outra paixão mais violente, que arma muitos homens contra um bispo, que é a cobiça que essa dignidade excita. Assim como existem filhos ambiciosos que se afligem com a vida longa de seus pais, existem também homens para os quais a longa duração de um reinado episcopal causa uma impaciência extraordinária. Não ousando atentar contra a vida do titular, eles trabalham por sua deposição com tanto mais ardor, na medida em que cada um aspira substituí-lo, em que cada um espera que a escolha recairá sobre si”.



“Os filhos de Cristo arruínam o império de Cristo mais funestamente do que seus inimigos declarados, e Ele, sempre bom, sempre misericordioso, ainda os chama à penitência! Glória a Ti, ó Senhor, glória a Ti! Que abismo de bondade existe Nele, que tesouro de paciência! Homens que, à sombra de Seu nome, de obscuros que eram se tornaram ilustres, abusam das honras, contra Aquele mesmo a quem as devem, ousam o que não é permitido ousar, insultam as coisas santas, afastam ou expulsam do santuário os homens virtuosos, a fim de dar aos ladrões a maior liberdade de fazer o que bem entendem”.


“Se você quiser conhecer as causas de tantos males, verá que são as mesmas dos anteriores. Sua raiz, sua mãe, por assim dizer, é a inveja; mas elas apresentam uma enorme variedade de formas. Um é demasiado jovem, outro não sabe bajular; esse não é bem visto por aquele; determinado figurão veria com desaprovação a eleição de alguém em detrimento do candidato que ele próprio apresentou; um é bom e paciente, outro é terrível com os pecadores; para outros, será por qualquer pretexto igualmente bem escolhido. 




[1] 2 Coríntios 3: 10.
[2] Mateus 28: 18.
[3] João 20: 23.
[4] João 3: 5.
[5] João 6: 54.
[6] Levítico 14.
[7] Números 16.
[8] Tiago 5: 14-15.
[9] 2 Coríntios 11: 3.
[10] 1 Coríntios 2: 3.
[11] Romanos 9: 3.
[12] 1 Timóteo 3: 1.
[13] Mateus 5: 11-12.
[14] Cf. 1 Timóteo 3: 2.
[15] CF. Mateus 5: 22.
[16] Cf. Provérbios 15: 4.
[17] 1 Coríntios 12: 28.
[18] 1 Coríntios 2: 11.
[19] Estreito que separa a Eubeia (Negroponte) da Beócia, no mar Egeu.
[20] Filipenses 2: 7.
[21] Ezequiel 18: 23; 33: 11.
[22] Timóteo 5: 16.

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