Catequese com contos medievais 7: O ermitão e o servidor que não aprendia nada

by - setembro 13, 2021

 



CONTO

 A roda


Houve um santo ermitão que morava num pobríssima cabana na floresta. Ele mantinha um pobre servidor que não retinha nada dos ensinamentos que ouvia. E por isso nunca ia assistir pregação alguma.

Ele contou então ao santo anacoreta a causa pela que nunca ia a missão ou catequese qualquer que fosse:

 — “Eu não consigo guardar nada do que ouço”. 

Então esse santo ermitão lhe disse: 

— “Pega essa panelinha”. Porque ele tinha uma panelinha para cozinhar o peixe, e lhe disse:
— “Põe água a ferver. Quando a água estiver fervendo joga um pouco na panelinha que está toda engordurada”. 

E o rústico fez o que ele mandou. 

— “Vai, joga tudo fora sem deixar nada”. 

Assim fez o serviçal. 

E o ermitão lhe disse: 

— “Agora olha se ela está gordurenta como estava antes”. 

O servidor tapado disse que de fato estava menos engordurada. Então o ermitão voltou a dizer: 

— “Acrescenta mais uma vez um pouco de água fervendo e joga-a fora”. 

Ele o fez. E ficou ainda mais limpa. E lhe ordenou agir da mesma maneira diversas vezes. E de cada vez a panelinha estava mais limpa. Por fim, o santo ermitão lhe disse: 

— “Tu falas que não reténs nada na cabeça! Sabes por quê? Porque tu tens tua mente engordurada como estava a panela. Vai e enche-a de água e verás que logo tua mente se purificará. E acrescenta um outro pouco. E quanto mais, mais limpa ficará. Quanto mais vezes ouvir a palavra de Deus, tanto mais tua mente se desentupirá. E quanto mais limpa ficar, tanto mais compreenderás a palavra de Deus. No fim, tua mente estará inteiramente limpa e purificada sem sujeira nem coisa feia alguma”. 


(Autor: San Bernardino de Siena, “Apologhi e Novellette”, Intratext)


Observação:

- ermitão é um individuo que cuida de uma ermida, ou seja, de uma pequena igreja em lugar ermo, fora da povoação. 
- anacoreta é um monge que escolhe viver recolhido, fora do convívio social. 

Formas de vida muito comuns nos primeiros séculos do cristianismo, o mais famoso santo a vivencia-la foi Santo Antão. 





CATEQUESE

"Lectio Divina"



Conferência ministrada por D. Armand Veilleux
no Centro Saint-Louis-des-Français,
Roma, Novembro 1995





A Escritura, escola de vida


A vocação de Antão, como nos foi descrita por Atanásio em sua Vida de Antão, é bem conhecida. Certo dia o jovem Antão, que havia sido criado numa família cristã da Igreja de Alexandria (ou ao menos na região de Alexandria) e que havia portanto escutado as suas Escrituras serem lidas desde sua infância, entra numa igreja e é particularmente movido pelo texto da Escritura que ouve sendo lida: a história da vocação do jovem rico: «Se quiser ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e depois, segue-me; terás um tesouro nos céus» (Mt 19,21 Vit. Ant. 2).

Antão sem dúvida havia escutado este texto muitas vezes antes: mas naquele dia a mensagem o acerta com mais força, e recebe-a como um chamado pessoal. Responde, então ao chamado, vende a propriedade da família – que era bastante considerável – e distribui os lucros desta venda aos pobres do vilarejo, conservando só o suficiente para manter sua irmã mais nova por quem é responsável.

Pouco depois, ao entrar na igreja de novo, ouve outro texto do Evangelho que o afeta tanto quanto o primeiro: «Não vos preocupeis com o amanhã» (Mt 6,34: Vit. Ant. 3). Este texto também vai direto ao seu coração como um chamado pessoal. Confia, assim sua irmã a uma comunidade de virgens (tais comunidades existiam há muito), liberta-se de tudo o que fica com ele e assume uma vida ascética próximo à sua aldeia, sob a orientação dos ascetas da região.


Esta história mostra claramente a importância e o significado que a Escritura tinha entre os Padres do Deserto. Antes de tudo, era uma escola de vida. E porque era uma escola de vida, era também uma escola de oração para os homens e as mulheres que desejavam fazer de sua vida uma oração contínua, como a Escritura lhes pedia.


Os Padres do Deserto desejavam viver fielmente em suas vidas todos os preceitos da Escritura. E nelas o primeiro preceito concreto que encontraram sobre a frequência de oração não era o de que deveriam rezar nesta ou naquela hora do dia ou da noite, mas que deveriam rezar sem cessar.


Atanásio escreve de Antão: (Vit. Ant. 3): «Ele trabalhava com suas mãos, tendo ouvido que quem é ocioso, não deve comer (2 Tes 3,10). E gastava o que ganhava em parte com pão, e em parte dando aos necessitados. Orava constantemente, uma vez que aprendera que é necessário rezar sem cessar em particular. Pois ele prestada uma atenção tão grande ao que era lido que nada lhe escapava da Escritura – conservava tudo e retinha na memória que ocupava o lugar de livros.»


Deve-se notar logo neste texto de Atanásio que a oração contínua é acompanhada de outras atividades, em particular do trabalho, e também a expressão de que ele (Antão) prestava muita atenção ao que era lido.

Obviamente não podemos falar da Escritura como uma escola de oração entre os Padres do Deserto sem nos referirmos a duas admiráveis Conferências que Cassiano dedicou explicitamente à oração, ambas atribuídas ao abade Isaac, a 9ª e a 10ª.

O princípio fundamental é dado desde o início da Conferência 9: «Todo o propósito do monge e da perfeição do coração consistem numa perseverança ininterrupta na oração.» E Isaac explica que todo o resto da vida monástica, a ascese e a prática das virtudes não tem sentido ou razão de ser a menos que conduza a tal fim.


O que significa "Lectio Divina"?


Antes de continuar, gostaria de tornar claro este ponto quando abordo a lectio divina entre os Padres do deserto. Não entendo a expressão lectio divina no sentido técnico (reduzido) que lhe foi dado na literatura espiritual e monástica destas últimas décadas.

A palavra latina lectio em sua primeira acepção significa ensinamento, uma lição. Num segundo sentido, derivado, lectio também pode significar um texto ou um grupo de textos que transmitem tal ensinamento. Assim falamos de lições (lectiones) da Escritura lidas na liturgia. Finalmente, num sentido posterior e mais ainda derivado, lectio pode também significar leitura.


Este último sentido é obviamente aquele no qual esta expressão é entendida hoje. Em nossos dias, de fato, lectio divina é mencionada como uma observância específica; e nos dizem que é uma forma de leitura diferente de todas as outras, e que acima de tudo não devemos confundir a verdadeira lectio divina com outras formas de simples «leitura espiritual.» Esta é uma visão completamente moderna, e como tal, representa um conceito estranho aos Padres do Deserto, e ao qual eu devo retornar no momento presente.


Se consultamos a literatura latina primitiva inteira (o que pode facilmente ser feito em nossos dias, quer por meio de boas concordâncias, quer por CDRoms do CETEDOC), vemos que cada vez que encontramos a expressão lectio divina entre os escritores latinos antes da Idade Média, esta expressão significa a própria Sagrada Escritura, e não uma atividade humana sobre a Sagrada Escritura. Lectio divina é sinônima de sacra pagina. Assim somos informados de que a lectio divina nos ensina tais e tais coisas: que devemos escutar com atenção a lectio divina, que o Divino Mestre, na lectio divina, nos lembra de tal e tal outra exigência etc.


Exemplos:


Cipriano: «Sit in manibus divina lectio» 
 (De zelo et livore, cap. 16)


Ambrósio: «ut divinae lectionis exemplo utamur» 
(De bono mortis, cap. 1, par. 2)


Agostinho: «aliter invenerit in lectione divina»
(Enarr. in psalmos, ps. 36, serm.3, par.1)


Este é o único sentido da expressão lectio divina durante o período dos Padres do Deserto. É este pois o sentido no qual eu vou usá-la nesta conferência, exceto quando faço alusão à abordagem contemporânea. Não devo falar de uma observância particular tendo a Escritura como seu objeto, mas da própria Escritura como Escola de vida e portanto, escola de oração dos primeiros monges.



Leitura?



Falar de «leitura» da Escritura entre os Padres nos leva, além disto, à confusão. A leitura tal como a entendemos hoje deve ter sido de fato muito rara. Os monges de Pacômio, por exemplo, na sua maioria vindos do paganismo, eram obrigados, à sua chegada ao mosteiro, a aprender a ler se eles já não o soubessem fazer, de tal modo a serem capazes de aprender as Escrituras. Um texto da regra diz que não deve haver ninguém no mosteiro que não saiba de cor ao menos o Novo Testamento e os Salmos. Mas uma vez memorizados, estes textos tornam-se o objeto de um «meletè», uma meditatio ou ruminatio contínua o dia todo e por uma grande parte da noite, tanto em particular quanto na oração comum. Esta ruminatio da Escritura não é entendida como oração vocal, mas mais como um constante contato com Deus através de sua Palavra. Uma atenção constante, que em si mesma se torna uma oração constante.


Uma história dos apotegmas mostra claramente esta importância relativa da leitura comparada com a importância absoluta dos conteúdos da Escritura:


«Numa época de frio intenso, Serapião encontra em Alexandria um pobre homem completamente nu. Diz a si mesmo: ‘Este é o Cristo, e eu sou um assassino se ele morrer sem eu ter tentado ajudá-lo’. Então Serapião tira todas as suas roupas e as dá ao pobre homem, e fica nu na rua com a única coisa que lhe sobrou, um Evangelho debaixo do braço… Um passante, que o conhece, lhe pergunta: ‘Abba Serapião, quem lhe levou suas roupas?’ E Serapião, mostrando seu Evangelho, replica: ‘Este é aquele que me levou as roupas’. Serapião então vai a um outro lugar e lá vê alguém que está sendo levado à prisão, pois é incapaz de pagar sua dívida. Quando Serapião retorna à sua cela, sem dúvida tremendo, seu discípulo lhe pergunta onde está sua túnica, e Serapião replica que ele a deu para onde era mais necessária do que sobre seu corpo. À segunda questão do discípulo: ‘E onde está seu Evangelho?’ Serapião responde: Eu vendi aquele que continuamente me dizia: Vendei vossos bens e dai-os aos pobres (lc 12,33): eu dei ao pobre para que eu tenha maior confiança no dia de juízo’» (Pat Arm. 13, 8, R: III, 189)


Como vimos no início, Antão, um cristão de nascimento, foi convertido à vida ascética pela lectio divina, ou a sacra pagina, proclamada na comunidade eclesial local, durante a celebração da liturgia.


Pacômio, que, pelo contrário, vinha de uma família pagão do Alto Egito, foi também convertido pela Escritura, mas pela Escritura interpretada e encarnada na vida concreta de uma comunidade cristã que viva o Evangelho, aquela de Latopolis. Vocês conhecem a história: O jovem Pacômio estava prestando o serviço militar no exército romano e foi enviado num navio que levou-o com outros recrutas a Alexandria. Uma noite, o navio parou em Latopolis e como os recrutas foram postos na prisão, os cristãos do lugar trouxeram comida e bebida aos prisioneiros. Este foi para Pacômio o primeiro encontro com o Cristianismo.


Para Antão, representante por excelência da vida anacorética, como para Pacômio, representante da vida cenobítica (monge que vive em comunidade), a Escritura é acima de tudo uma Regra de vida. É mesmo a única verdadeira Regra do monge. Nem Antão nem Pacômio escreveram uma Regra no sentido em que seria entendida na tradição monástica que os seguiu, embora um certo número de regras práticas de Pacômio e de seus sucessores tenha sido reunido sob o nome de «Regra de Pacômio».


Trecho da conferencia retirado da: liturgiadashoras.online





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