Na maioria das vezes os assuntos são tratados como preto no branco, existe a "opinião a" e a "opinião b" (pode existir soterrada em alguma mente acanhada a "opinião c"), elas são opostos e distintas, normalmente inconciliáveis. Muitas vezes é assim... mas nem sempre. Alguns assuntos quando bem trabalhados chegam à bifurcações em que os argumentos, que antes eram disparados de trincheiras opostas, parecem se tornar uma só coisa, estranhamente parecem que estão falando a mesmíssima coisa os mesmos soldados inconciliáveis de antes. Eu chamo a esse momento de "encruzilhada".
Em alguns assuntos isso é fácil de notar. Por exemplo, a pauta do veganismo e o cristianismo, em outros nem tanto, como a medicina de Santa Hildegarda x a New Age ou a Teologia da Prosperidade x a boa administração dos bens temporais.
Para servir de exemplo começo pelo primeiro tema citado. Todos sabem que um vegano não consome produtos de origem animal e que suas razões são políticas no sentido de influenciar com isso a indústria alimentícia e o agronegócio, além da pauta da crueldade animal. Por outro lado, o cristianismo orienta um reto uso dos bens criados, ou seja, a cadeia alimentar existe e deve se manter. A Ordem criada por Deus nos aponta a beleza da cadeia alimentar e dos ensinamentos milenares que os animais transmitem entre si justamente por conta dela (a cadeia alimentar está ligada a sobrevivência das espécies), no entanto, o reto uso dos bens criados também nos faz refletir sobre a Ordem Divina na criação e na nossa ação co-criadora. Veja bem, um porco demora por volta de um ano para crescer, comendo coisas que porcos comem e vivendo como um porco vive, isso é o certo, mas não é o que acontece. O mesmo para a galinha e a vaca, a primeira é dopada com hormônios para dar ovos sem conta, de gemas quase tão brancas quanto a clara e a segunda produz uma quantidade de leite que é impossível para uma vaca que vive como vaca, comendo o que uma vaca come. Ou seja, o desejo de lucro realmente alterou a Ordem da Criação estabelecida por Deus ao ponto de fazer com que uma galinha cresça o que tem que crescer em menos de três meses... ver isso como normal não é sensato.
Provavelmente, você notou que estamos numa bifurcação, numa encruzilhada, os argumentos ditos anteriormente não são ilusórios, são reais e verdadeiros, você sabe disso por ver isso na realidade (mesmo que seja uma visão da comodidade dos corredores do supermercado), mas o motivador desses argumentos e dessa linha de pensamento não é o combate contra o capitalismo, a crueldade animal, a aversão a cadeia alimentar e sim a alteração da Ordem da criação, ou seja, o motivo é: não foi assim que Deus fez as coisas para a nossa manutenção, não é assim que deveríamos cuidar da criação.
O que importa na bifurcação é o motivo do argumento, sem notá-lo podemos sair rotulando a todos como ambientalistas progressistas sem nenhum motivo real.
Provavelmente você se lembra da menina que enviou um pedido ao Papa Francisco para que Sua Santidade ficasse não sei quanto tempo sem comer carne. Esse tipo de postura nos leva a notar como no geral as pessoas conhecem pouco os costumes cristãos católicos, principalmente os costumes tradicionais, um católico não come carne todas as sextas feiras do ano (exceto solenidades), não come nos dias de jejum obrigatório, não come carne na quaresma (se assim escolher), se fizer a quaresma de São Miguel pode também não comer carne durante a mesma (se assim escolher), se entrar numa ordem penitente não come carne nunca (exceto se estiver doente). Fazer abstinência de carne é uma prática religiosa penitente (não somente cristã) muito comum, que nada tem com bandeiras e pautas, mas hoje não comer carne é usado largamente como bandeira política para alistar e agregar pessoas nos grupos de base da massa de manobra revolucionária. O veganismo atualmente nada tem com a vertente oriental, é somente uma vivência para unir grupos com determinadas pautas, é uma "cola de pertencimento" que une vários grupos e suas pautas, por isso você pode escutar com frequência que "o veganismo é um ato político", e da forma como ocorre atualmente, de fato o é.
Dessa forma é assombroso o número significativo de católicos que alinhados a essas idéias seguem-nas não por querer melhor viver a Ordem da criação, já mencionada, mas como reflexo dos argumentos desses grupos. É profundamente diferente respeitar a criação (sua ordem de nascer, viver e morrer, o galo como galo, a galinha como galinha, a vaca como vaca, cada coisa no seu tempo e lugar, no curso da criação e da cadeia alimentar) e levantar bandeiras desprovidas de sentido eterno.
As pautas podem chegar a um extremo horripilante, há alguns anos contava aos meus alunos em uma formação online para um grupo em Kendall, EUA, que assisti a um documentário que contava a história de famílias que viviam perto de uma área de reserva que antes era usada como terreno de caça. Bem, falando dessa forma parece muito sensato preservar a mata, no entanto, na vila ali perto, de moradores locais, famílias que nunca saíram dali e que plantam feijão, uma família permitiu que mostrassem o que comiam: feijão e muitas vezes só feijão. Pois era o que plantavam. Acontece que esse pai de família caçava tatu para alimentar a família de uma forma mais completa, pois você já pode imaginar uma família com seis crianças, vivendo somente com feijão. Mas ele não podia mais caçar para dar de comer aos filhos pequenos e se fosse caçar seria multado em cinco mil reais... uma pessoa que só come feijão, em todas as refeições, seria multada em cinco mil reais por caçar para dar de comer aos filhos. Enfim, é esse o fim dos caminhos ideológicos, um tatu vale mais que uma família com seis crianças.
Outro ponto de bifurcação citado como exemplo é a medicina de Santa Hildegarda (rogai nós!). Eu me lembro que há 12 anos existiam pouquíssimas pessoas que falavam sobre os escritos dela. Me lembro de um dia pesquisar a respeito, no meu consultório (não atendo mais), e encontrar pessoas não muito ortodoxas falando uma coisa ou outra. Depois encontrei um curso sério em Portugal e foi só. Durante todos esses anos os ensinamentos da Santa cresceram na Europa e não aqui no Brasil, até 2020. Bem... o ponto é que a Santa usa recursos naturais, o que é bem lógico já que ela viveu na Idade Média (que não tem nada de obtusa), dentre seus usos encontramos plantas e pedras, que só são orientados e efetivos depois de uma conversão verdadeira.
Bem, a bifurcação está no uso dos elementos naturais, tal ato pode ser recebido como um discurso semelhante aos dos esotéricos e adeptos da New Age. No entanto, existe uma diferença sutil, mais profunda, entre: reconhecer que Deus realmente colocou princípios curativos em plantas e algumas pedras (não todas) e reduzir toda a espiritualidade ao uso de plantas ou pedras. É claro que esse assunto sempre será espinhoso, principalmente aqui no Brasil, porque nós somos um povo dado a terceira tentação do deserto, como diziam os primeiros missionários jesuítas que aqui chegaram, nós temos tendência ao paganismo, a sucumbir ao pedido do diabo de ajoelhar diante dele e o adorar. Essa inclinação é a raiz de toda a bagunça religiosa atual, essa tendência a misturar tudo num sincretismo que nos impede de ver algumas obviedades. Por exemplo, existe uma diferença entre acreditar que Deus colocou características curativas em plantas e algumas pedras (não todas) e acreditar nos astros, por exemplo, como é a "nova" - nada nova - moda católica do momento: palavrões místicos interplanetários (retrocedendo todo o trabalho da RCC no país inteiro quanto a isso, diga-se de passagem, para não faltar com a justiça). Os planetas podem obedecer um ditame divino, como o sol que rodou em Fátima, ou como os eclipses Tetrabiblicos, mas todos são sinais que Deus permite para mostrar seu poder ou assinalar algo no Plano da Salvação (como os eclipses citados) ou algo na Ordem da Criação (como o ciclo circadiano ou a ação reguladora do sol e da lua sobre alguns outros componentes da criação como o mar, o ciclo de plantio e colheita e etc.), os astros em si não deviam ser pauta de conversas cristãs, isso seria - e é - um retrocesso ao paganismo, assim como dar ênfase demais, sem falar de conversão, a plantas e minerais também o seria e é.
Santa Hildegarda apresenta uma medicina dentro da Ordem da criação, que parte da conversão verdadeira e da vida na graça, ela diz que nada mais fará efeito se a vida espiritual não estiver acertada diante de Deus. Ou seja, somente por isso já vemos que embora exista a indicação de plantas e pedras, a motivação e o alicerce são diferentes da frente da New Age, que prega uma espiritualidade sem compromisso, uma vivência espiritual que não cobra nada. A medicina de Santa Hildegarda é o antídoto que a Santa Tradição preservou por séculos para esse momento da história humana, de adoecimento físico, metal e espiritual, em que devemos voltar a vivência de uma religião em comunhão com a criação, dentro da redenção que o Senhor Jesus nos alcançou, sem as artimanhas do paganismo e sua tendência a ressuscitar deusas pagãs e seus costumes. Uma vivência da busca por uma vida sadia de corpo, mente e alma; de uma vida que se une ao resto da criação e não que se aparta dela.
Dentre os temas citados como exemplo, também citei a Teologia da Prosperidade x o bom uso dos bens materiais que estão sobre a administração de cada um. Esse ponto é extenso e se liga a Doutrina Social da Igreja, costumo dizer aos meus alunos, no curso da Doutrina Social da Igreja, sobre a boa gestão dos bens materiais e a responsalidade que aquele que tem mais tem diante do que tem menos, pois se ele tem mais não é por injustiça divina e sim porque ele deve ser administrador desses bens em prol dos outros. E todos nós temos mais que alguém, vale lembrar, sempre existe alguém que tem menos do que temos, infelizmente. Portanto, a visão cristã da gestão dos bens temporais é essa: você pode e deve crescer, evoluir, ser promovido, ter mais renda, para o bem dos seus e de todos os outros (da sua comunidade local e depois na sociedade), que precisam de ajuda; você deve progredir como administrador dos bens que Deus lhe deu, mas você não é o dono de nada, é o administrador e Deus pedirá contas disso. Nem preciso dizer o quanto esse motivador é diferente do motivador da Teologia da Prosperidade e da nova onda de incentivo a ganhar e ganhar; um ponto importante está sendo esquecido: que quanto mais abastado você é, maior é a sua responsabilidade.
Os assuntos citados são somente uma amostra do que acontecerá, os debates se tornarão a cada momento mais sutis, as diferenças mais difíceis de se notar e as linhas de discernimento mais finas. Por isso, a necessidade de observar os motivadores verdadeiros das escolhas e discursos. Nem sempre a fala será 8 ou 80, muitas vezes grupos contrários falarão coisas parecidas e cabe ao ouvinte observar a veracidade do motivador dessa fala, o que sustenta o discurso, assim como o fim último da proposta contida no discurso.
Esse nível de discernimento se faz necessário com urgência, primeiro para não taxar de progressista ou ideológico o que e quem não é; segundo para reconhecer a característica mutante das ideologias e portanto do comportamento de seus adeptos; não se surpreenda por exemplo que um membro progressistas ou amante de ideologias passe a usar símbolos tradicionais, não se surpreenda que comecem a falar da beleza e etc... basicamente ocorrerá mudanças no agir dos membros desses grupos desde que isso possibilite defender e passar adiante as bases da ideologia que acreditam, se é um caminho para as pessoas eles mudarão a forma de agir para se infiltrar, desde que não comprometa a mensagem revolucionária que desejam passar. E isso já está acontecendo. Portanto, cabe mais atenção às sutilezas, às nuances que passam como positivas e boas diante de um olhar desatento.
Esteja alerta e vigilante. Mas não se esqueça de pedir a Deus a graça de um olhar límpido, um coração puro como a pomba e um instinto sagaz como a serpente. Nós nascemos para sermos santos, não tontos. Que você tenha um coração vibrante e bondoso mas também uma mente atenta e sagaz.
Singelamente, Ana.