O deslocamento social que a internet gera

by - setembro 12, 2022






Eu sei, estou falando muito sobre a influência da internet, mas não vejo como não falar sobre isso. Todas as relações humanas mudaram por conta da internet, muitas positivamente e outras negativamente. Aqui busco expor o que não é muito comentado por aí. Como estudo e abordo filosofia, não posso deixar de fazer o que se faz em filosofia: perceber.

O ponto é que a internet alterou o eixo das interações sociais, pronto, é isso. Não nos relacionamos baseados num “nós” e sim num “eu”. Além da soberania do “eu interneteiro” — que falei no texto, pouco bem recebido, da “obrigação de ser alegre” — que pode cancelar, pular, calar, pausar, mutar alguém com toda maestria, parece existir também uma alteração brutal na empatia.

Você provavelmente já escutou que não é muito bom interromper alguém que está falando de um problema para contar os seus. Sabe aquele “eu também, menina, aconteceu…” que às vezes sai da boca sem percebermos? Como se o nosso problema fosse tão ou mais horrível… Pois é, isso é falta de empatia e também é um sinal de que achamos que o mundo gira em torno do nosso umbigo.

Acontece que essa situação é o modus operandi da internet. O “eu” está no comando de tudo, não existe um “nós” nas interações, um “eu falo, depois, você fala”; não existe a imprevisibilidade que uma conversa fora da internet oferece. Dessa forma, é super comum que as pessoas façam monólogos e não notem que isso não é bom. Ninguém quer conversar, discutir sobre algo; existem somente monólogos em todos os lugares. Até mesmo nos comentários é comum que as respostas sejam baseadas no “eu” e não na percepção de uma relação. Parece ser a mesma interação que se tem com um caixa eletrônico.

Isso é interessante, quando vemos o que acontece em locais com muitos “seguidores”, onde deveria existir muita relação, existe somente um monólogo de todos os lados. Não surpreende que estejamos tão inaptos para ver opiniões diferentes ou que tudo seja visto como um debate exaustivo, como um cabo de guerra imaginário em que os lados adquirem adeptos apaixonadamente odiadores dos adeptos do lado oposto.

Esse comportamento é muito semelhante ao dos coríntios que se apegavam a pregadores e entravam em debates sobre isso. São Paulo os corrigiu dizendo que isso era a característica de uma espiritualidade infantil. De fato, se notarmos a história, veremos como ainda não aprendemos. São Tomás e São Boaventura não concordavam em vários pontos; muitos dos seus livros surgiram por conta dessas questões e, mesmo assim, eram amigos e se tornaram santos e doutores da Igreja. São Vicente Ferrer apoiou por um tempo o antipapa Clemente, pois mesmo com dons proféticos errou ao ver a realidade política do alto clero. Depois se arrependeu e apoiou o papa Urbano (já apoiado por Santa Catarina). O mesmo aconteceu com Santa Coleta e, veja bem, ambos lutavam contra os hereges com sucesso, mesmo não vendo com clareza essa questão. O que quero dizer com isso? Quero dizer que as pessoas erram, é normal que exista erro na percepção da realidade, já que existe uma série de coisas que não vemos e não sabemos. As bolhas só agravam essa realidade.

Recentemente, eu recebi umas respostas dizendo que eu refuto umas pessoas. Acontece que, espantosamente, nunca nem mesmo pensei nelas quando escrevi e me arrisco a pensar que meus pensamentos não pousaram nelas nos últimos, no mínimo, um ano. Não é estranho essa visão sobre as pessoas, seus trabalhos e relações?

Partindo desse mesmo ponto, também não é estranho lermos tudo com tom mental de briga? Parece estranho, mas suspeito que um número significativo de pessoas lê as coisas com os tons da briga da novela mexicana mais esfarrapada.


Sempre cito esse exemplo, mas vale falar novamente. Apesar de tantas interações, nós carecemos das sutilezas de antigamente. Estamos em contato com tanta gente, mas perdemos o tato social que uma pessoa de uma cidadezinha de antigamente, com seus seis familiares próximos e vinte conhecidos, tinha e tinha muito. A sutileza de notar as pessoas, ler os gestos, respeitar temperamentos, observar e se encantar com realidades diferentes da nossa.

Acredito que podemos criar uma bolha com os recursos que temos. Veja bem, além de expandir horizontes, estamos restringindo horizontes de convivência. Por exemplo, se eu sou professora e só acompanho professores, estou restringindo meus horizontes, pois eu vivo num mundo em que existe uma multidão de outras coisas que são interessantes. Eu posso (e devo) selecioná-las, claro, mas dentro de um leque maior. No entanto, o que acontece é o oposto: as mães seguem mães, as noivas seguem noivas, os briguentos seguem briguentos. Veja que coisa interessante: as pessoas querem cópias do que elas já vivem, cópias delas mesmas.

Esse é o ponto mais interessante no deslocamento gerado pela internet. Em 2012-2013, me lembro que ficávamos fascinados com um congresso on-line. Foi o ano que os congressos começaram a surgir. Tudo era recebido com muita gratidão, afinal, um professor permitiu que sua aula fosse vista por outras pessoas fora do congresso. A generosidade do professor era recebida com gratidão. Agora isso se tornou fácil demais. Podemos aprender tudo pela internet, mas não podemos aprender como ser alguém que nota as pessoas, e a gratidão foi solenemente esquecida. A internet poderia ser um lugar para treinar a capacidade de ver outras realidades além da nossa. Que graça tem criar um universo de cópias?

Usar a internet pode ser uma semeadora de pertencimento. Você pode encontrar a sua turma pela internet, estudar, crescer, mas isso só será verdadeiro se não deixarmos de lado o fator inerente à criação: nós não somos iguais. Criar uma bolha de pessoas que vivem o mesmo que você (não me refiro a coisas morais e de princípios) pode gerar um deslocamento da realidade criada e uma inaptidão para viver no mundo.

Singelamente, Ana







 


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