Artigo original em 23/06/2018
Atualização em 31/05/2023
"Quais são os nossos olhares? Olhares de apropriação, destruição, sedução, incompreensão, reprovação? Talvez seja preciso começar mergulhando nossos olhares nos olhares do Filho, para ver de maneira diferente. Talvez seja preciso deixar crescer em nós o desejo intenso de conhecer o Filho, de modo a se parecer com Ele. Talvez seja preciso reconhecer todas as nossas cegueiras aceitando oferecer-nos à luz fulgurante de Cristo. Mas como se precisa de tempo para se adaptar, ou se readaptar a Deus."
Cônego Constant Tonnellier
Os olhos
“Os olhos são a candeia do corpo” (Mt 6, 22).
“Ver, de certa forma, é apropriar-se daquilo que se vê. Temos um exemplo disso na história de Giges, guarda de confiança de Candaules, rei da antiga Lídia. Tendo visto a rainha despida - por insistência do próprio rei, que exaltava a beleza da esposa - Giges apaixona-se por ela, mata o soberano, toma-a para si e apossa-se do trono” (Heródoto I, 8-14).
Graças aos olhos, contemplamos o mundo; no entanto, também pelos olhos somos atraídos à cobiça. Como Eva, ao ver o fruto proibido antes de pegá-lo, apropriou-se dele primeiro pelo olhar e depois pelo tato.
O olhar é um dos sentidos mais comprometidos na queda tão conhecida do Éden; assim também aconteceu com a audição, pois são as duas portas para o mundo do pensamento.
Estas portas estão defeituosas desde a queda e podem ser reedificadas com a devida Ordem que a Luz de Deus oferece.
Todos nós estamos fixados em realidades terrenas, tomando por beleza o que nada tem de eterno, instigados a encarar a vida como um monólogo reativo de uma pessoa trancada numa sala de espelhos distorcidos.
Qual a essência da beleza?
Essa é a busca dos olhos. Sua função é ser janela para uma realidade intangível e, muitas vezes, invisível e indecifrável, captando as suas nuances no visível. Esta é a busca e o deleite dos olhos.
Ao olhar uma obra de arte, não saber qual cor ou pincelada a fez ser bela, mas é bela. Ao olhar uma pessoa, ver que não são os apetrechos que a tornam bela, ela é bela. Olhar uma paisagem e não saber identificar qual árvore ou cor a faz bela, mas é bela. A beleza vem do mistério, do simples oculto, da perfeita percepção de que a fonte daquela beleza não é terrena e não se apoia em coisas terrenas.
Apreciar a beleza é um ato espiritual, e a beleza em si é sempre etérea.
Por isso, tanta destruição advém dos padrões e limitações impostos pela cegueira do mundo. Tornamo-nos incapazes dessa abertura à essência do belo, pois a beleza está no que não vemos.
Interessantemente, a geração que mais se distanciou do apreço pela essência da beleza é a mesma que abraçou o despudor com todas as forças. Mostra-se absolutamente tudo, e as formas de arte são caóticas. Não existe o apreço pelo oculto e, muito menos, pela essência oculta e fundamental da beleza. Assim, para que alguém seja apreciado, é preciso mostrar que se esforçou por esse apreço; é preciso esfregar na cara, já que a sensibilidade às sutilezas invisíveis da beleza não existe. É preciso, então, instalar-se numa expressão artística, pessoal ou social que deseja ser vista, atender às expectativas modernas, temporais e caóticas, para então ser devidamente apreciado. Para o nosso espanto, nem mesmo os cristãos escaparam da dinâmica do caos.
A nossa cegueira criou uma ditadura da aparência e deu a isso o nome de beleza. Mas a beleza é, antes de tudo, ser, uma essência que simplesmente existe nas coisas e pessoas belas em si mesmas. A beleza é espiritual, expressa na pureza e ordem da forma (harmonia), nas virtudes (equilíbrio espiritual), na verdade (canal das verdades eternas).
Nas artes, não se trata de uma pauta ou uma emoção, e na vida cotidiana, não se trata de acessórios. A essência da beleza é a recepção da luz fulgurante de Cristo, é a adaptação à existência em Deus e à sua beleza. Essa existência em Deus nos permite perceber a beleza de uma obra de arte, de uma pessoa, de uma paisagem, pois temos o olhar receptivo à essência da beleza, que não sabemos muito bem definir como uma coisa específica (na obra de arte, na pessoa ou na paisagem); simplesmente está lá e é belo, pois, de alguma forma, invisível e inacessível, está ligado ao Supremo Belo.
Referências
JERUSALÉM, B. de. Bíblia de Jerusalém. 10. ed. São Paulo: Paulus, 2015. Disponível em: https://amzn.to/3qmzBCe.
OLIVEIRA, J. V. G. de. Filosofia da Beleza. Rio Bonito: Editora Benedictus, 2022. 200 p. (Coleção Arte de Beleza). Disponível em: https://amzn.to/3C1lZz0.
NUNES, B. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Edições Loyola, 2016. 116 p. Disponível em: https://amzn.to/43xVApb.
TONNELIER, C. 15 de Dias de Oração com São João da Cruz. Paulinas, 2011. 104 p. Disponível em: https://amzn.to/3GO5PvE.