A Virtude do Desapego| Uma Virtude por Mês: Maio

by - maio 05, 2023




Trabalho realizado de 02 à 05 de maio de 2023


"Aclarada pelas luzes da fé, elevada pelos voos da esperança, imersa em Deus pela caridade, a vida cristã é toda celeste. Nostra autem conversatio in coelis est (Fl 3, 20).

O verdadeiro cristão só toca o mundo com os pés. Fitos os olhos no céu, faz a sua peregrinação sobre a terra, suspirando com o profeta: Heu mihi, guia incolatus meus prolongatus est (SI 119, 5). Por que é que meu exílio se prolonga? Gloriosa Jerusalém, quando me abrirás as tuas portas? Quando poderei contemplar os teus esplendores, exultar com as tuas harmonias e imergir-me na torrente das tuas delícias? Deus de beleza, de ternura e de amor, que sois já a alegria do meu coração, quando poderei ver-vos face a face e unir-me a vós em eterno abraço?

Tal deveria ser a nossa vida. Mas não é sem lutas e esforços que o homem se lança assim para os bens eternos. Desde que o pecado transtornou completamente a nossa natureza, em vez de voar para Deus, o nosso coração volta-se para si mesmo; fascinado pelo brilho enganador dos bens da terra, movido pela concupiscência, nem ergue os olhos para o céu e, longe de se erguerem, as suas aspirações abaixam sempre mais.
Omne quod est in mundo, concupiscentia carnis est et concupiscentia oculorum, et superbia vitae – “Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida” (1 Jo 2, 16)" ¹



"Há pessoas que querem santificar-se, mas a seu modo; querem amar a Jesus Cristo, mas seguindo as suas inclinações, isto é, sem renunciar aos seus divertimentos, à vaidade dos trajes, às delícias da mesa; amam a Deus... mas não se desapegam das riquezas, honras do mundo, vaidade ... Essas pessoas fazem oração, frequentam os Sacramentos, mas, como têm o coração cheio de afeições terrenas, logram pouco fruto das suas devoções. O Senhor nem sequer lhes fala, porque vê que seria em vão."²



Dante e Virgílio no Inferno (detalhe). William Bouguereau, 1850 Musée d'Orsay, Paris


Cegados pela concupiscência



Concupiscência é o termo utilizado para designar a cobiça e apreço por bens materiais e prazeres sensuais. Vem do latim concupiscens, que significa “o que tem um forte desejo."

Não ameis o mundo nem as coisas do mudo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida – não procede do Pai, mas do mundo.” (1Jo 2, 15-16).


Portanto, São João nos aponta o forte desejo da carne e dos olhos, somados a soberba da vida, que dita a vida no mundo. 

"Se alguém ama o mundo não está nele o amor do Pai"

"E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus." (Romanos 12, 2)

"Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?" (Marcos 8, 38)

"Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens, ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, justa e piamente." (Tito 2, 11-12)

"Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé." (1Jo 5, 4)


O mundo é o império de satanás, este império convive conosco desde a queda de Adão. O mundo que devemos vencer não são as forças da natureza, não se trata, neste caso, do cosmos, da Criação.


Desta forma é surpreendente quando, apesar de todo o declínio que o pecado gerou nos homens e na criação, somos informados, pelo mesmíssimo São João de que:

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3, 16)


"Deus amou o mundo". Não se trata aqui da quantidade de amor e sim da intensidade e sobretudo da qualidade, do tipo de amor. Para que pudéssemos vencer o mundo, passo apontado com insistência nas Sagradas Escrituras, foi preciso que o Senhor jorrasse sobre o mundo toda a potência do Seu amor, o mesmo que criou todo o cosmos, e abrisse para nós a vida eterna. 


Como nos ensina a catequese tradicional da Igreja Católica: o mal entrou no mundo pela desobediência dos nossos primeiros pais, Adão e Eva. Estes, antes da queda, eram puros e viviam no Édem em união com Deus. Possuíam: inteligência infusa ou ciência (proporcional ao estado de humanos, eles não precisavam que ninguém lhes ensinasse os componentes ou utilidade das coisas no jardim, por isso, Adão deu o nome a todos os bichos assim que colocava os olhos no animal); integridade (perfeita sugestão dos sentidos à razão); imunidade (a todas as doenças e a imortalidade corporal).

Estes dons são chamados de "Dons preternaturais", são dons não exigidos pela nossa natureza humana, mas dados pela Potência Divina para aperfeiçoar a nossa natureza. Todos estão, atualmente, buscando a "sua melhor versão", bem, a nossa melhor versão era o "estado original", o ser humano em sua melhor versão. Mas ainda existia mais! Nossos primeiros pais tinham a Graça Santificante, esta graça foi infundida no dia da criação dos nossos primeiros pais e os tornavam filhos de Deus e herdeiros do Paraíso (o Éden não era o Paraíso, era um jardim terrestre). 


Mas aí aconteceu "um forte desejo" por uma maçã proibida (concupiscência dos olhos). Perdemos tudo: os dons preternaturais e a graça santificante. Não sabemos nada e mesmo estudando muito ainda nos falta, adoecemos, morremos e, como você deve ter notado, os sentidos não obedecem a razão. Nossos primeiros pais, como ensina a Tradição Católica, fizeram penitência numa caverna por longos anos, já que viveram bastante, mas viram um filho matar o outro e o mal entrar nos corações profundamente. Seus descendentes se tornavam cada vez mais maus e a Bíblia nada mais é do que o resumo do Plano Divino para nos resgatar do demônio e ... de nós mesmos. ³

Começaram, então, os ensinos simples com quem o Senhor tinha disponível: Noé, uma arca e depois o mesmo Noé bêbado; Abraão e seu medo de deixar sua família e terra por um Deus que ele não conhecia; Isaac o menino tão esperado, Jacó o gêmeo esperto que acabou sendo enganado e depois onze irmãos que queriam dar fim num irmão chamado José que acabou salvando a todos. Seguimos a história com Moisés e um povo cabeça dura, depois Juízes, Profetas e um povo ainda muito cabeça dura.

Uma situação desesperadora, mas como ficamos com a mente embotada, ninguém se importou. A concupiscência cegou a todos e até mesmo os melhores reis de Israel, não eram muito exemplares. 

Mas chegou o tempo do Senhor nos trazer luz. Um menino nos foi dado e toda a nossa esperança está nEle.

O sacrífico do Senhor nos deu remédios. Ele é a Verdade para a nossa ignorância, Ele é a Vida para a nossa morte espiritual e corporal, Ele é o Caminho das virtudes para que possamos submeter os sentidos à razão.

Pela ordem divina os apóstolos começaram uma grande ação de evangelização para tirar as almas da concupiscência. São Pedro insistia na vida santa em suas cartas, São Paulo era extremamente exigente na mudança de conduta em seus escritos, principalmente aos Gálatas e aos Coríntios, São João afirmava repetidamente que a amizade com o mundo era inimizade com Deus. 

O remédio nos foi dado, propagado, mas ainda estamos solenemente presos aos grilhões do apego, da mesma forma que as comunidades da época dos apóstolos.


Frederick Sandys (1829–1904) Love's Shadow, 1867





Apegos e a Virtude do Desapego



Os apegos podem ser vivenciados de diversas formas e uma quantidade significativa de pessoas nunca foi apresentada ao degrau inicial da vida cristã:  a virtude do desapego. Por isso, Santo Afonso é enfático ao defender o malefício do apego. Um costume, um mau linguajar, más companhias (reais ou virtuais), maus modelos, maus livros, vestes imodestas, vaidades, honras humanas, panelinhas, aplausos, apegos à modas, marcas, quantidade além do necessário de roupas, perfumes, livros... Bem, tudo isso pode ser um desequilíbrio na virtude do desapego, também conhecida como "pobreza espiritual".  

A palavra virtude vem do latim "virtus" que significa "força". É preciso força para "viver no mundo sem ser do mundo" (Jo 15, 19) e esta força vem do desapego. Desapego de todas estas pequenas coisas supracitadas, que juntas formam um emaranhado de finas linhas que nos prendem e sufocam. 


Narciso apaixonado pela própria imagem




"Essas pessoas fazem oração, frequentam os Sacramentos, mas, como têm o coração cheio de afeições terrenas, logram pouco fruto das suas devoções. O Senhor nem sequer lhes fala, porque vê que seria em vão."

A vida sacramental (comunhão, confissão) nos oferece acesso às sementes de virtudes semeadas em nossa alma, mas elas só germinam se conseguimos nos desapegar desses emaranhados de fios que sufocam-nas. Sim, você tem razão, estamos falando da parábola do semeador e espero que você tenha notado que satanás age pelos nossos apegos. Às vezes, ele nem precisa fazer algo, está ganhando o crédito sem esforço, nós que realmente nos sabotamos solenemente. 

Eis aí a importância da virtude do desapego, da pobreza de espírito, que nos faz buscar o Reino dos Céus e, justamente por isso, herdá-lo (Mt 5,3). 




Efeitos da Virtude do Desapego


Nós estamos nos afundado em concupiscência por saudade do Édem. A verdade é que todos nós sabemos que nascemos para algo mais, isso é saudade do estado original. Nós estamos em desordem, portanto, buscamos nutrição humana e espiritual fora de Deus. 

A concupiscência dos olhos pode ser vista facilmente em vídeos do Tiktok e Instagram vistos sem fim, mas também é notada, mais tradicionalmente, no fato de querermos possuir tudo e controlar tudo. Ver tudo, saber sobre tudo. Uma condição propícia para estados de perturbação interior, afinal, não fomos feitos para gerenciar tantas informações e controlar a tudo. 

A concupiscência da carne se refere às atitudes animalescas, passamos a negociar os limites do pecado e a justificar o pecado pela fraqueza. Também se refere aos sentidos super excitados: vídeos, séries, músicas, barulho, palmas, uma tv ligada todo tempo, redes sociais, opiniões sobre tudo e todos, mil stories de várias pessoas. Uma verdadeira hipnose dos sentidos, amortecendo o corpo, entorpecendo a mente. Uma grande cortina de fumaça que nos afasta dos remédios que a ressurreição nos alcançou.


A soberba da vida se refere a regalar-se nas coisas, nos bens do mundo e ser honrado por isso. 



Enfim, você já deve estar inquieto, normalmente, este tema deixa uma sensação estranha na boca do estomago ou no peito, afinal, quando falamos de desapego já imaginamos um monge maltrapilho que de tão desapegado levitou. Também é comum sentir uma sensação de que esta virtude nos pede que não tenhamos amigos, nem familiares queridos; sem divertimento, comidas boas, roupas boas, enfim, parece que todos pensam que serão infelizes. Este é o motivo de ser um degrau desprezado com certa frequência.


Bem, a virtude pede que haja o desapego de honras, das amizades e parentes, das riquezas? Sim. 

A virtude pede que haja o desapego de vaidades nas vestimentas, renúncia das imodéstias, das falas baixas e palavrões, dos comportamentos não cristãos? Sim.

A virtude pede que haja desapego dos divertimentos desmedidos, dos bares e festas, dos locais, eventos, programas e séries mundanos? Sim. 


Mas isso não significa infelicidade e sim purificação. E não estou a falar dos recém convertidos, não! Estou falando, como Santo Afonso, bem aponta, das necessidades de desapego das pessoas que estão na Igreja, tomando os Sacramentos e patinando na vida interior com toda a pompa. 


O desapego não é matéria de segunda ordem, é de importância radical para o crescimento em qualquer virtude. 


É a resistência em se desapegar que gera dor. É o querer andar com um pé em cada barco que gera dor. É a vida dupla que gera dor, pois a pessoa que toma os sacramentos e não se desapega, toma o remédio para logo depois tomar doses cavalares de veneno. 


Os efeitos da virtude do desapego são: clareza, liberdade e ordem. 




Atitudes de Desapego


O apego pode ser observado por afeições desordenadas por pessoas, coisas e prazeres. Por exemplo: a dependência excessiva de companhia, aprovação, ciúmes, inveja e medo de ser abandonado podem sinalizar apego às pessoas; dificuldade em se desprender de objetos, livros e roupas (seja em quantidade, qualidade, imodéstia ou imperfeição) pode sinalizar apego às coisas, assim como também o é quando consumimos sem necessidade ou acumulamos coisas; já a necessidade de sempre estar em uma festa, de confortos,  de uma distração, boas comidas e cosméticos pode sinalizar apego aos prazeres. 


Das afeições terrenas: buscar ter um amor ordenado e não apegado aos amigos e parentes, observar se as amizades e suas opiniões estão tomando o lugar dos pensamentos de Cristo, ordenar as afeições por animais de estimação. Os relacionamentos devem ser dotados do equilíbrio amoroso e da cordialidade , mas devem gerar sempre crescimento e amadurecimento; as dependências que impedem este crescimento são ruins humanamente e espiritualmente. 


Dos bens da terra: se desapegar do desejo de possuir sempre mais. Nesta temática é importante diferenciar o dever necessário de possuir bens em prol da família, uma vida digna e capacidade de empreender para ajudar uma outra pessoa (segundo a Doutrina Social da Igreja). Mas uma fixação por ganhos e lucros a custa de renunciar à proteção e privacidade da família, utilizar subterfúgios para ganhar audiência e aumentar a rentabilidade, pode estar ligado ao apego às coisas da terra. 


Dos prazeres e estima do mundo: buscar não se afeiçoar a elogios, ao desejo de ser amado e valorizado, assim como se afastar de buscar satisfação sensoriais todo o tempo: boas comidas, cosméticos e etc. Neste aspecto, não significa não ter nada de bom. Vamos refletir: uma coisa é ter um bom perfume outra é ter vários, sem uso; uma coisa é ter um tanto de boas roupas, que duram, outra é ter várias sem uso e compradas no impulso ou por estar na moda (incluo lojas de roupas modestas e decentes, roupas que podem ser compradas por puro impulso); uma coisa é ter um momento de lazer e cuidados por semana, outra é não conseguir estar numa situação sem confortos e cosméticos sem inquietação e reclamação ou pior, com vergonha de quem você é sem essas coisas; uma coisa é ter um almoço especial de tempos em tempos, outra é ficar refém da "boa comida" (aqui me refiro à restaurantes e variedades por não conseguir comer o mesmo sempre). 

Perceba que a questão em relação a estes apegos externos é a dependência deles e a influência que eles possuem na sua vida e maturidade. É preciso comer o que tem na mesa, é preciso buscar ter uma vida digna com paga justa, é preciso realizar os cuidados necessários com a imagem - priorizando a limpeza e o zelo - mas sem vergonha de quem você é sem aquele cabelo, aquele toque no rosto, aquele sei lá o quê; é preciso se relacionar com as pessoas de forma sadia e não dependente (inclusive parentes), sem necessidade de ganhar elogios a todo tempo e sem grandes saltos diante dos xingamentos; todos devem ser tratados com cordialidade.


Apegos internos


Os apegos podem ser de matéria emocional ou comportamental: se apegar à própria opinião, medo de ser abandonado e ter o ego ferido, apego à cargos e seus privilégios (seja dentro ou fora da Igreja), medo de perder determinada pessoa (em relacionamentos amorosos românticos ou não), sentir-se deprimido sem companhia. Se livre da obrigação de ter que opinar sobre tudo, das ilusões de controle, das expectativas irreais, da dependência da aprovação alheia e das aparências irreais que os status modernos trazem.



Conclusão


As coisas (pessoas e honras) devem passar por nós e se tornarem ou nos tornarem algo melhor. Somos administradores da multiforme graça de Deus que lança os seus raios também sobre as coisas materiais e as fazem participar do nosso processo de santificação.  


Referências


1- AZEVEDO C.SS.R., Padre Oscar das Chagas. As Doze Virtudes para cada Mês do Ano. Editora Vozes, p. 75-102. Disponível em: https://amzn.to/3AUD5OC


2- OMER C.SS.R., Padre Saint. Seleta das belas orações, Doutor da Igreja. Editora MBC, 2019, p. 53. 


3- INSTITUTO DIOCESANO MISSIONÁRIO DOS SERVOS DA IGREJA. Catecismo Essencial: Subsídio Catequético Vocacional - Devocional. 5. ed. São José do Rio Preto: Instituto Diocesano Missionário Dos Servos da Igreja, 1987. 84 p.

4- JERUSALÉM, B. de. Bíblia de Jerusalém. 10. ed. São Paulo: Paulus, 2015.




Leitura Complementar

- Filocalia: o livro clássico da Igreja oriental (aqui)
- O Peregrino Russo (aqui)
- O Ideal da Alma Fervorosa (aqui)
- Os Três Monges Rebeldes (aqui)









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2 comments

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