As fontes da paz intelectual| Parte 1: A paz moral

by - outubro 18, 2023

 





O livro escrito pelo professor Léon Ollé-Laprune em 1892 aborda os aspectos necessários para a paz intelectual. Um dos pontos mais surpreendentes é a sugestão de uma unidade moral; a moral é apresentada como a grande área de equilíbrio das ideias. O segundo ponto surpreendente é a sugestão de uma abordagem católica que utiliza várias fontes de saber. Tal sugestão seria um ultraje para alguns atualmente, assim como a sua dedicação à Teologia Sagrada, mesmo sendo leigo e professor universitário.

Uma vez que os assuntos em crise são justamente ‘Deus, a alma e a vida futura’, cabe maior dedicação do estudioso católico a esta temática. O estudo da Teologia, ainda que em tempos melhores, seria um saber exigido, pois a Sagrada Teologia é o cume do saber, e a filosofia é serva da Teologia. No entanto, em situações como a nossa, é uma exigência inegociável a qualquer um que queira realmente contribuir para a paz dos espíritos e das mentes. Um livro com 131 anos, muito atual, embora não possamos dizer que na catolicidade ainda existam muitas pessoas com convicções firmes.

"[Léon] Em 27 de junho de 1862, contando com 23 anos, anota a seguinte reflexão: 

Seguirei com vivacidade o plano de estudo proposto pelo Padre Graty aos amigos da verdade e da sabedoria: seis anos empregados no estudo sério das ciências e da Teologia. Hesitei; gostaria mais de um trabalho mais fácil... Mas o que eu poderia responder? Que não tenho coragem? Mas essa é uma palavra digna de um homem e de um cristão? Fizeste, meu Deus, reprovações interiores à minha laxidão. Procurei-Vos na oração e tomei minha resolução. Ó Jesus, abençoai essa resolução e me dê a força de cumpri-la. Ó Jesus, eu me consagro a Vós. Começarei amanhã. Vida regrada, trabalho constante, oração viva e interior, meditação profunda" 


"Deus, a alma, a vida futura: sobre esses grandes objetos a filosofia de hoje está cheia de dúvidas e questões, e se não se filosofa a este respeito, a incerteza é a mesma: a atmosfera intelectual esta perturbada em todo lugar. Quanto mais o tempo passa, mais raros são aqueles que, fora do cristianismo, ou, mais propriamente, fora da Igreja Católica, tem convicções firmes e claras sobre esses assuntos."


"E não haverá paz para as almas a não ser que a maior parte delas se reencontre ou, para melhor dizer, se reúna em uma vontade comum e uma ação comum. Querer o mesmo sobre certos pontos essenciais, decidir-se pelos mesmos motivos na condução da vida... eis a paz moral"




O autor aborda uma unidade moral mesmo existindo uma divisão de espíritos. Para exemplificar, ele cita a causa de um grupo de pessoas em prol do descanso dominical. Cada um possui um motivo e até mesmo um conjunto de ideias sobre o próprio domingo; não possuem unidade de espírito, mas possuem a unidade moral de defender algo em comum por motivos diversos. O autor defende que tais ações devem ser firmadas e alicerçadas. Isso me recorda muito as ações pela modéstia verdadeira vindas de diversos grupos, por motivos distintos; assim como a defesa da Missa Tradicional, vinda também de diversos grupos por motivos distintos, embora ainda falte, em ambos, uma abordagem do benefício social que os temas trazem. Esta é a proposta do autor: tais uniões morais em prol da sociedade, mesmo sem uma unidade de motivos. Claro que as duas seriam o ideal, mas sabemos que não seria uma proposta realista. A unidade moral exige um acordo intelectual sobre o ponto em questão, um acordo de que tal coisa deve ser defendida ou feita, mesmo que por motivos distintos. Essa abordagem é cheia de limpidez, precisão e firmeza. Nós, como cristãos, temos motivos mais elevados para determinadas coisas, mas nada impede que abracemos os motivos menos elevados, quando corretos, pois a ideia em comum a ser defendida precisa ter firmeza e limpidez. Por isso, muitas vezes o proposto pelo autor encontra alguns entraves; as pessoas atualmente têm pouca firmeza, o que enfraquece a ideia comum de um grupo. Assim, embora eu concorde com o autor, não posso deixar de notar que tal método só é possível com um grupo de pessoas que possuam fibra interior suficiente para manter uma ideia comum. Parece-me ser este o problema atual: são poucos os que aceitam bancar as próprias convicções.

"A unidade moral sem acordo intelectual é uma quimera". 


"Notemos bem que é no domínio moral, no domínio prático, que se procura o ponto de união. Todas as noções permanecem incertas, todas as questões permanecem sem solução, ou, que é o mesmo, cada um pensa, julga e afirma o que lhe parece bom sobre qualquer coisa. A divisão dos espíritos é extrema."


Os homens de boa vontade podem se reunir para criar um ambiente moralmente mais saudável, unidos por este único objetivo moral.


"...concebo que escritores de talento tomem a resolução de respeitarem as almas nos seus escritos e de renunciarem a toda exibição literária malsã. Esses seriam os companheiros do dever de um novo gênero, homens decididos a fazer uma obra prima sem se sacrificar à moda. Se eles se reunissem aos artistas, escultores, pintores, músicos e a associação crescesse, ela seria capaz de produzir bons efeitos, sem outra ligação intelectual estre tantos homens diferentes que o pensamento de que a salubridade moral é um bem precioso, e que não há razão para corrompê-lo, não tendo a arte nada a perder, mas tudo a ganhar."


"Imagino um país onde este tipo de associação se multiplicaria. Este seria sinal de despertar moral muito sério. Eu veria nele o indício de uma crescente busca por restauração, e ao mesmo tempo, a prova de que este povo começaria a compreender que ele precisa fazer um esforço para se salvar".




No entanto, o autor é enfático ao dizer que duvida de uma união moral sem união intelectual. Mesmo que sejam pessoas de boa vontade com um pensamento moral comum, mas com divisões intelectuais significativas. Ou seja, não estão de acordo sobre ao menos um dos pontos do caminho de resolução, pois possuem concepções de vida muito diferentes. Seria um exército de pessoas que ‘querem fazer o bem’, mas não possuem definição nenhuma do que é o bem, então como poderiam fazê-lo?

Descrição familiar, não é mesmo?

Portanto, existe a possibilidade de uma união moral com uma coerência intelectual, mesmo que os motivos não sejam os mesmos. Mas não existe como realizar uma união moral, mesmo com boa vontade, quando se tem uma visão muito diferente sobre o emprego da vida e as concepções da mesma. Estou me detendo neste ponto por me parecer importante salientar que, muitas vezes, se priorizam as percepções de um determinado grupo em detrimento de uma ação comum que poderia ser melhor executada unindo forças do que dispersando, como no caso da Missa Tradicional, por exemplo. Seria melhor focar nos benefícios sociais, morais e espirituais do que nas percepções de cada grupo sobre a história dos ritos e a política no Vaticano. Um caminho é visivelmente mais eficaz do que o outro: um une pessoas de vários grupos por um único bem, especial a todos por motivos distintos; o outro é uma briga sem fim entre grupos.

No entanto, mesmo que os motivos sejam diversos, é preciso a unidade de pensamento, que se alicerça na verdade; só a verdade une. A verdade, no entanto, é descoberta na veiculação das ideias. É preciso que exista uma conversa cortês sobre os motivos de cada grupo, e a verdade com o tempo se mostra. Não é uma defesa do grupo de pessoas, e sim da verdade.


"Ireis virar as costas porque quereis proibir a especulação? E estais decididos  a proibir toda especulação por que as divergências de opinião se produziriam imediatamente e viriam a ter consequência na aliança moral sonhada e desejada? Mas o que seria isso, senão omissão política ou cortesia que não tem aqui o seu lugar?"


Todas as causas possuem as suas ‘guerras civis’, são discordâncias dentro dos próprios grupos. Isso, infelizmente, é normal. Saímos de um período de profundo silêncio na Igreja; muitos padres ainda acreditam que ‘ficar quieto é o melhor’, fingir que não vê, dizendo ainda que os protestantes não reclamam de seus pastores. Obviamente que não, eles abrem uma igreja para si, mas nós não podemos (e não queremos) fazer isso; como também não podemos deixar de salientar quando algo não está correndo da forma correta dentro dos valores que os ‘homens de boa vontade’ decidiram estabelecer para tentar fazer algo pela Igreja. Essa veiculação de ideias é boa, pena que até mesmo entre os tradicionais existe uma série de ideias pré-concebidas a serem revisitadas, começando pela incapacidade de escutar os motivos dos outros grupos que possuem objetivos morais semelhantes. A veiculação dos motivos possibilita o aprofundamento nas questões, essencial nesta cultura do superficial.


"Todas as declarações que abreviam e diminuem devem ser temidas. Elas marcam o que podemos ter, o que é um espécie de supressão do resto. Como o que elas fixam é em si muito vago, e como, devido a essa impressão, elas não fixam nada realmente, elas só reúnem o espírito de forma aparente; a unidade que elas criam é fictícia e estéril. Elas lembram o que chamei acima de convenções políticas e da cortesia".


Uma vez, o falecido chefe da Casa Imperial do Brasil escreveu uma carta dizendo algo do tipo: ‘que deixemos as diferenças para serem debatidas no ambiente cordial da monarquia’. Concordei plenamente. Esta cordialidade é muito diferente das convenções políticas que, na verdade, não estabelecem nada. Um exemplo disso é a negação do aborto. Isso é o correto, claro (!), mas é estéril a longo prazo, simplesmente por não contar com todo o ensino moral sobre a preservação da vida: os contraceptivos, as cirurgias em prol de se fazer a si mesmo estéril e outras correções que são suprimidas. É uma declaração bem abreviada do ensino da Igreja, por isso, é estéril, é uma união fake.


"Estamos aqui. Tudo está instável. A confusão está em todo lugar. É àqueles que tem ideias claras e firmes que compete trabalhar para fortalecer e esclarecer o seu entorno... Eis a primeira condição de toda influência que conta: importa mais o que se é do que o se diz ou mesmo o que se faz. Portanto, é preciso dizer e fazer... É preciso criar em torno de uma ideia, julgada essencial, todo um "movimento de opinião", toda uma agitação... dessa forma uma ideia forte como que cria órgãos que a tornam palpável e operativa. Ela faz o seu caminho. Ela vai se realizando apesar de tudo".


"Este é o poder das ideias. Mas o que queremos são ideias que refaçam os espíritos e as almas. Há muitas ideias no mundo que são capazes de os desfazer, e que conseguem isso. Nós queremos as capazes de refazer, e que tenham sucesso nisso. Onde encontraremos tais ideias?"


Nós, como católicos, ainda não estamos muito versados no mundo das ideias, resultado de décadas vivendo na caverna revolucionária criada para nós por muitos membros do próprio clero. Não sabemos o poder de um livro, de um texto, não sabemos o poder de um padre indicar uma leitura, de nós mesmos indicarmos livros, o poder de documentários ou de qualquer forma de palavra veiculada. Ainda existem aqueles que veem contos piedosos como insignificantes, acham que os grandes tomos de escolástica são mais úteis. Como estão enganados(!), no fluxo do tempo, os contos piedosos ganham em durabilidade, sendo os últimos a serem excluídos durante a instalação de uma crise. Somos pouco versados na batalha das ideias. Por exemplo, este texto, assim como muitos outros, ajuda no “movimento de opinião”. É interessante como esse ponto, tão simples, é profundamente incompreendido. “Há momentos para calar e momentos para falar”; o movimento de opinião é o momento para falar. As ideias expostas são como peças numa construção de dominós; quando uma é emitida, desencadeia outras. Isso é o movimento de opinião. Não se trata de uma emissão desordenada de achismos. É preciso focar nas peças certas.


"A quem, então, caberia assumir a frente do movimento e presidir ao grande trabalho de restauração intelectual e moral?

É claro que não é aos políticos enquanto tais. Não aos eruditos e nem aos filósofos enquanto tais; os eruditos não podem atingir o fundo dos espíritos e das almas, e nem os filósofos, embora por outras razões. A quem caberá a grande tarefa de que falamos? Aos homens de pensamento? Não precisamente. Aos homens de boa vontade? Sem dúvida. Mas de onde eles tomarão suas ideias inspiradoras e reguladoras? Eis o ponto.

A anarquia intelectual e moral, que é visível, é claramente um mal. Julgamos que é preciso trabalhar para fazê-la cessar. Isto é um dever para todo homem que pensa.

 

Aqui só falamos deles e para eles. Filósofos, letrados e escritores, nós dizemos a nós mesmos, dizemos entre nós, e dizemos ao público, que temos um dever: o de trabalhar, na medida dos nossos meios e forças, para fazer cessar a anarquia intelectual e moral que todos sofrem, que tudo sofre. Queremos, portanto, trabalhar pela pacificação dos espíritos. Sabemos que a paz completa, definitiva, não é deste mundo. Não sonhamos com uma paz impossível. 


Faço uma bela imagem do nosso mundo moderno enfim pacificado. A paz, ou seja, a ordem, que é a concórdia. Cada coisa em seu lugar, em seu devido posto e todas unidas conspirando para um fim superior... As fontes da paz e as fontes da regeneração moral e intelectual são as mesmas. Os espíritos e as almas serão pacificados com o que é capaz de refazer espíritos e almas. O que é capaz de refazer os espíritos e as almas é a verdade, a verdade moral inteira. Pois bem, onde está a verdade moral inteira?"













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