Todos os dias o mesmo café coado, com a água fervida na mesma chaleira, aquecida no fogo do mesmo fogão, que fica na mesma cozinha, que não recebe a mesma claridade todas as manhãs. Todos os dias o mesmo tênis pisa na mesma rua, faz a caminhada no mesmo trajeto, sob as mesmas árvores, que não estão debaixo do mesmo céu.
As mesmas coisas se desenrolam numa vida quieta e absolutamente normal. Que grande graça é a normalidade, as tarefas pequenas desempenhadas na quieta passagem do tempo, que como um gentleman passa com um aceno de cabeça e mão na cartola.
O som da quietude é a maior sinfonia do universo, a vida parece um livro que está sendo folheado pelo silêncio da passagem do tempo numa rotina calma e cheia de repetições normais. A louça ao sol, o vento que faz badalar os sinos na cozinha, o sol que descansa no tapete da sala às 13 horas, no guarda roupa do quarto às 15 horas e no quadro da sala às 16:30.
Pequenas mudanças aqui e ali acontecem na casa e na vida, mas tudo numa certa calma. Sentir a vida quieta parece nos colocar numa outra existência, é como mudar a estação de rádio num aparelho analógico, trás um alívio imediato finalmente encontrar algo sem ruídos e frases fragmentadas.
As respirações se tornam mais profundas, os olhos se enchem de lágrimas sem nenhuma vontade de chorar ou tristeza, é como encontrar um velho amigo que trás conforto e certo sentido.
A fala da vida quieta é densa, instrui muito em poucos minutos, alimenta a alma de certas forças que não são encontradas em outros locais. Parece uma oração recebida, em que o próprio silêncio intercede por nós.
Existe uma situação mental que ganha o nome, por alguns, de algo como "deslocamento do self". Self é o "consigo". Então seria um deslocamento do "estar consigo". Não é difícil notar este deslocamento: nuvem mental, certa desconexão do corpo, irritabilidade, uma sensação de fraqueza interior. Existem várias orientações sobre essa situação, mas tenho pensado que se assemelha muito à uma escassez da nutrição que a vida quieta trás.
A vida quieta não é uma vida totalmente silenciosa, antes é a vida que se desenrola num fundo de silêncio. Por exemplo, quando estou com a máquina de lavar ligada, algo no forno da cozinha, um feijão na panela de pressão, o moço da manutenção arrumando o jardim do prédio e eu mesma falando numa aula online, se eu parar um momento encontrarei o silêncio ali, no pano de fundo de todos esses acontecimentos simultâneos. Me parece que é essa percepção - hora maior, hora menor - que constitui o que eu chamo de vida quieta, que me permite de tempos em tempos olhar em volta, ver o Tempo passar com a mão na cartola e não como o Coelho do País das Maravilhas que me faz correr atrás dele sem rumo. Antes, a vida quieta é a vivência da oração de agradecimento realizada no alívio e reconhecimento deste fragmento de eternidade que repousa sobre a criação como bençãos em partículas cintilantes.
Singelamente, Ana