O anseio por uma vida sazonal: ritmo e tradição
Iluminura "Cosmos, Corpo e Alma" de Santa Hildegarda de Bingen apresentada em seu livro "O Livro das Obras Divinas". No centro, está a roda da vida com as estações harmonizadas ao ciclo da vida humana. Os animais em suas obras normalmente significam as tentações e suas forças (pelos sopros que fazem) que a alma precisa vencer. No canto inferior esquerdo, a santa pinta a si mesma para mostrar que é testemunha da visão, que, por sua vez, é muito maior que ela mesma.
Quantas reflexões podemos tecer sobre a palavra 'tradicional'? Recentemente, tenho me permitido ponderar longamente sobre o que, de fato, significa moldar a vida segundo essa palavra. A verdade é que, aqui no Brasil, o termo 'tradicional' está fortemente associado à forma da Santa Missa e, em alguns casos, ao comportamento e vestimenta. Isso é realmente fundamental.
No entanto, como seria uma vida mais alinhada aos ritmos das estações, ao tempo litúrgico e à devida harmonia entre descanso e trabalho? Tenho nomeado esse alinhamento, em meus pensamentos, como 'vida tradicional'. Talvez você já tenha notado o crescimento dessa busca em diversos grupos, dos mais variados credos ou convicções. Parece ser um anseio genuíno por um ritmo que perdemos, mas que ainda está latente em nossa memória coletiva. Um anseio é algo que, como explico no último capítulo do livro Modéstia (2018), pode ser observado em vários países, com nuances distintas, atreladas a um único fio condutor: "quando estamos diante de um comportamento social, devemos nos atentar a alguns pontos cruciais visando analisá-lo bem".
No entanto, viver realmente no campo não é, de imediato, a coisa mais simples de se realizar, pois, afinal, a maioria de nós pode se considerar um 'bicho da cidade' ou, para alguns, um 'guri de apartamento', em maior ou menor grau. O que fazer, então?
Em 1 Tessalonicenses 4,11 lemos uma orientação interessante: "E procureis viver quietos, e tratar dos vossos próprios negócios, e trabalhar com vossas próprias mãos, como já vô-lo tenho mandado". É um incentivo para a busca por uma vida simples e tranquila, focando no trabalho realizado com alegria para o Senhor. Já em Provérbios 31, 27 encontramos a orientação para as mulheres sobre este tema: "Atende ao bom andamento da sua casa e não come o pão da ociosidade". Viver quieta e tranquilamente sobre a terra, mas sem o ócio maléfico pairando sobre nós. "Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria" (Eclesiastes 9,10). Um ritmo de trabalho que não se torne doentio na busca por obras e resultados terrenos. Nossas forças são limitadas, limitado é o nosso entendimento. Numa grande aula sobre o esforço e a tensão intrínseca existente no tema, o Senhor continua: "E tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor e não aos homens" (Colossenses 3,23). O esforço por resultados terrenos cansa e fadiga, excede as nossas forças. O esforço para a maior glória de Deus santifica. Quanta diligência em ambos os esforços e quanta tristeza vem do primeiro e quanta bênção vem do segundo. Afinal, os resultados humanos não importam, o Senhor se preocupa mais em nos fazer trilhar o seu método. É o método que importa.
Quando falo ou escrevo sobre isso sempre me recordo de São Roberto de Molesmes, o fundador dos trapistas que nunca deixou de ser um beneditino. Ele sofreu muito como abade de um mosteiro, os monges bateram nele e ele saiu em fuga do convento do qual era abade. O motivo? Ele queria restaurar o cumprimento da regra de São Bento entre os monges beneditinos. Quando fundou a sua tão sonhada ordem trapista, dos monges brancos (os monges pretos eram os beneditinos), não pôde viver com eles. Um santo que se santificou pelo anseio, mas colheu pouquíssimos resultados terrenos concretos. É um exemplo claro de que o que importa, para o Senhor, é seguir o método, mesmo sem resultados a olhos vistos. A fidelidade ao método pode ser chamada de disciplina. Vale a pena comentar que a disciplina, a diligência, é a primeira virtude nomeada pelo monge professor Hugo de São Vítor. A instrução pedagógica católica é uma educação espiritual que se plasma na matéria e se alicerça na disciplina, esta virtude abraça amorosamente a vida cristã.
Não existem áreas separadas; todas as áreas que compõem um ser humano fazem parte da educação católica. Seu ensino espiritual não significa uma restrição, antes é uma sinalização de sua ordem superior, pois o que é superior influencia o que é inferior, ou seja, o espiritual abarca o material, pois é superior a este. A segmentação das áreas, fruto da mente moderna, gera um conjunto de fissuras que desfavorecem a harmonização dos ciclos e ritmos do tempo. Passamos a viver achando que a leitura de um clássico da literatura, a filosofia, a oração piedosa são coisas distintas, sem nenhuma ligação. No entanto, estão completamente interligadas. E a primeira ponte entre elas é a virtude da disciplina. Como ensina o Cardeal professor Hugo de São Vítor: "(...) a prática da disciplina dirige o espírito para a virtude, e a virtude então leva à bem-aventurança".
No entanto, em nossas mentes modernas, o termo disciplina é pintado com imagens tristes e taciturnas, com notas graves de tristeza e talvez castigos. No entanto, a disciplina pedida pelo salmista no Salmo 119, ensina Hugo de São Vítor, deve ser quista e pedida, juntamente com a ciência, a capacidade de discernir. A disciplina, portanto, trata-se de um itinerário didático que se inicia com a ciência (que é ver nas coisas terrenas os sinais dos desígnios divinos, é um senso político celestial das coisas terrenas segundo as eternas, adquirida pela meditação das Escrituras, da Santa Doutrina e da vida dos Santos). A ciência abre as portas para a disciplina (a habilidade de se deixar instruir por Deus, avaliar os próprios atos segundo as diretrizes meditadas e então mudar as atitudes). A disciplina nos leva a ser bons (já que nos tornamos continuação do Evangelho vivendo-o numa conduta santa).
A conduta santa ensinada por Hugo de São Vítor é a base da pedagogia católica e se refere não somente à oração, mas à conduta ao comer, falar, vestir, estudar, meditar, ou seja, abarca todos os atos e áreas. Parte da inanição católica vem do esquecimento de que a formação católica, sua instrução, se refere a todas as áreas que formam uma pessoa e que a piedade é o alicerce de todas as outras instruções. E, em suma, todas as áreas são trabalhadas em conjunto com uma atenção generosa à forma de administrar o tempo. Talvez, quando essa percepção, alocada no âmago da palavra tradicional, voltar realmente às nossas mentes possamos ter uma esperança mais luminosa e posturas menos jactantes.
As Quatro Têmporas e Seu Efeito no Ritmo do Tempo
As Quatro Têmporas, ou Quatuor Tempora, são períodos de jejum e abstinência instituídos pela Igreja Católica para marcar o início das estações do ano. Esses períodos são:
Têmpora da Primavera: Celebrada após o primeiro domingo da Quaresma.
Têmpora do Verão: Celebrada na semana após Pentecostes.
Têmpora do Outono: Celebrada após a festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).
Têmpora do Inverno: Celebrada após o terceiro domingo do Advento.
Segundo Michael P. Foley, em seu livro "The Light of the World: A Celebration of the Four Seasons": "As Têmporas são um poderoso testemunho de como os ritmos litúrgicos podem se alinhar aos ciclos naturais, promovendo uma sensação de harmonia e propósito ao longo do ano." Além disso, o autor Uwe Michael Lang, em seu ensaio "The Genius of the Roman Rite", menciona: "A observância das Têmporas nos convida a refletir sobre a generosidade de Deus em cada estação, ajudando-nos a manter um ritmo de vida que respeite os ciclos naturais e a piedade."
O Midrash (comentários sobre os livros da Torá) explica em VaYikra Rabá sobre a importância do trabalho e da diligência: "Como o agricultor que trabalha sua terra com devoção e esforço, também nós devemos dedicar-nos ao trabalho, servindo como exemplo de diligência e compromisso nas nossas vidas diárias."
Ela não come o pão da ociosidade (Provérbios 31, 27).
Devemos permitir que a simplicidade da vida sazonal nos ensine a encontrar Deus em nossas pequenas ações diárias. Voltar às raízes de uma vida simples e tranquila é essencial para um elo catolicamente sadio e mais profundo com a natureza e, o principal, com Deus. A vida sazonal nos convida a adotar um ritmo mais lento e significativo, seguindo os ciclos da natureza e das estações do ano. Aproveitar cada estação ao máximo, celebrando as pequenas bênçãos que cada uma traz.
Adotar uma rotina sazonal pode nos ajudar a viver de forma mais veraz, respeitando os tempos de atividade e descanso. Sem uma preocupação exasperada com o calendário como tinham os pagãos, mas numa atenção amorosa de filhos para a criação mantida pelo amor divino por nós.
Numa época tão atribulada quanto a nossa, olhar para o céu e verificar, verbi gratia, que o sol está se pondo no mesmo horizonte, mas um pouco mais para a esquerda do que na estação anterior, pode ser um motivo para semear um sorriso no rosto e frutificar em oração por Sua bondade. Isso também é testemunhar as obras do Senhor.
Práticas simples
Alimentação
Santa Hildegarda dava grande atenção à alimentação, acreditando que a comida deve proporcionar conforto. Um olhar atento ao consumo de alimentos locais e sazonais não apenas promove uma alimentação mais saudável, mas também fortalece a agricultura local. Há algo de profundamente significativo em visitar feiras e mercados locais, escolhendo frutas e vegetais da estação, repletos de frescor e sabor. Longe de ser uma atividade ativista, trata-se mais de uma ação consciente da qualidade inferior das produções alimentícias em massa e do aumento dos desertos alimentares nas grandes cidades. Desertos alimentares são regiões onde os habitantes têm acesso limitado a alimentos saudáveis, nutritivos e baratos.
Ritmo de Exercícios
Ajustar a modalidade de exercícios conforme a estação favorece uma atividade harmônica. Por exemplo, caminhadas na primavera, natação no verão, corridas no outono e aumentar o tempo de oração mental no inverno. Tais mudanças não só promovem o bem-estar físico, como também o equilíbrio mental e espiritual.
As estações estão realmente passando por mudanças, e existe uma nova ansiedade intitulada "ansiedade climática". O mundo moderno, gerador de uma instabilidade monstruosa, somado ao anseio marxista de que o estado supra todas as inseguranças, gera uma predisposição para ansiedade e terror.
Diante disso, é essencial adotar uma atitude cotidiana dinâmica, baseada em observar a estação, acolher a realidade e agir de acordo. Verificar os efeitos saudáveis dessas práticas pode proporcionar um equilíbrio entre corpo e mente, ajudando-nos a enfrentar os desafios contemporâneos com serenidade e discernimento.
Celebrações e Rituais Sazonais
Viver as têmporas, celebrar as festas tradicionais de Santa Luzia, São Nicolau, São João, o onomástico (santo com o mesmo nome que o seu), o santo do dia do nascimento, além da Páscoa e do Natal, ajudam a viver cada estação de uma forma agradável e católica.
Ritmo de Trabalho e Descanso
Equilibre períodos de trabalho e descanso de acordo com as mudanças sazonais. O inverno pode ser um tempo de mais repouso e reflexão, enquanto a primavera e o verão podem ser períodos de maior atividade e produtividade.
Refletir sobre o que cada estação pode ensinar.
Essas atitudes cultivam a habilidade de respeito ao tempo, tanto ao nosso quanto ao das pessoas ao nosso redor. Encontramos alegria nos talentos próprios e nos dons de nossos irmãos, expressando agradecimentos mais frequentes a Deus e as pessoas pelo trabalho, pelos esforços, serviços e talentos daqueles que nos cercam.
Podendo desenvolver a capacidade de comunicação respeitosa e tranquila no dia a dia usando o antigo e tão esquecido "bom dia", "boa tarde", "boa noite". Quanto cansaço podemos poupar, quanta alegria podemos gerar com coisas simples como respeitar o próprio tempo e o tempo do próximo.
Veremos que o respeito ao tempo, ao nosso tempo, com a simples pergunta "Onde lanço as sementes de tempo que o Senhor me deu?" ou "Eu respeito as sementes de tempo das outras pessoas?", "Isso, essa pessoa, esse lugar respeita o meu tempo?" gera grandes mudanças de atitude em relação a escolhas de amizades, contatos, trabalhos e tantas outras áreas de nossas vidas, redescobrindo, assim, a serenidade e a harmonia no respeito ao tempo que nos faz crescer em graça.
Referências:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Provérbios 31, 27: "Ela não come o pão da ociosidade."
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1 Tessalonicenses 4, 11: "E procureis viver quietos, e tratar dos vossos próprios negócios, e trabalhar com vossas próprias mãos, como já vô-lo tenho mandado."
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Eclesiastes 9, 10: "Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria."
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Colossenses 3, 23: "E tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor e não aos homens."
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Provérbios 12, 24: "A mão dos diligentes dominará, mas a preguiça será sujeita a trabalhos forçados."
FOLEY, Michael P. The Light of the World: A Celebration of the Four Seasons.
LANG, Uwe Michael. The Genius of the Roman Rite.
KELLY, Matthew. Rediscovering Catholicism. Beacon Publishing.
KEMPIS, Thomas à. A Imitação de Cristo. Paulinas.
CHITTISTER, Joan. The Gift of Years: Growing Older Gracefully. BlueBridge.
BARROS, Ana Paula. Modéstia. 2018.
CALICO TWINE. "A Seasonal Life". Disponível em: <https://calicotwine.com/seasonal-life>. Acesso em: 14 out. 2024.
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